Quando comprei este CD o fiz com um misto de receio e de curiosidade. Na época eu conhecia pouco a obra de Wagner, mas já conhecia a excentricidade de Glenn Gould, e me pareceu no mínimo deveras curioso um especialista em Bach tocando Wagner ao piano, ainda mais obras tão ricas orquestralmente falando, como a abertura dos “Mestres Cantores”, ou até mesmo o magnífico “Idílio” de Siegfried.
Mas o que realmente chama a atenção neste cd é Glenn Gould regendo um pequeno grupo de câmera. Foi sua primeira, única e última experiência no gênero, pois faleceu logo depois. O “Idílio” de Siegfried foi originalmente composto para uma pequena orquestra, 13 ou 14 músicos. Transcrevo abaixo o texto do libreto que acompanha o cd:
“(…) Em 1964 o próprio Gould ingressou no seu futuro de alta tecnologia retirando-se completamente da cena concertística. Em seguida permitiu ao público que ouvisse a sua produção musical somente sob a forma de cuidadas gravações, transmissões radiofônicas e transmissões de vídeo. Certa vez Wagner disse que, depois ter inventado a ‘orquestra invisível’ em Bayreuth queria agora inventar o ‘palco invisivel’, do qual Gould se voltava para o público na maneira pela qual Wagner enunciava às platéias de execuções convencionais e obrigava os ouvintes a aceitar os seus termos de apresentação.
Ao primeiro impacto não se associaria a transparência cristalina de um especialista em Bach como Gould com as redundantes sonoridades do ultra-romântico Wagner. Efetivamente, porém, Gould nutira profundo amor por Wagner, um amor que encontrava o próprio fundamento na natureza incorrigivelmente polífônica da sua música. As transcrições aqui apresentadas não só deram a Gould a possibilidade de ter uma experiência direta de Wagner, negada a quase todos os pianistas, mas forneceram também o material para um disco que correspondia aos critérios caros a Gould, apresentando música conhecida de maneira nova, estimulante e diferente. A prestidigitação característica de Gould resulta efetivamente em passagens característicamente contrapontísticas como o fugato do toque de trompa da Viagem ao Reno e a música redundante de Beckmesser na abertura de Os Mestres Cantores com o seu subsequente momento culminante, um tour de force de aguda força rítmica e luminosa transparência. Divertindo-se com a a possibilidade do meio de gravação ir além da execução ao vivo, Gould criou aqui algumas passagens mais densas da gravação a quatro mãos em mais de uma pista, não encontrando nenhum motivo musical para sacrificar a riqueza de Wagner aos limites de dez dedos invisíveis.
Em vez de procurar imitar a orquestra, Gould reelaborou estas peças para piano substituindo as figuras rítmicas por trêmulos introduzindo esquemas de motivos em acordes que se demonstravam muito longos para serem sustentados pelo piano e modificando as duplicações do baixo. Em toda a obra se observam numerosos toques interpretativos inesperados. O tema de marcha dos mestres cantores, pelo início da abertura, habitualmente um momento importante, procede aqui como uma breve e divertida passseata. Não se observa nem mesmo o tradicional retardamento desse tema durante seu aparecimento final, pois Gould saber transformar o enorme tumulto dos instrumentos de corda em um flutuar aéreo.. No ousadamente lento ‘Idílio de Siegfried’ o tema do acalanto em escala descendente é introduzido de maneira surpreendentemente não sentimental; a elaboração em tonalidade terna da peça é posta de lado por um momento sucessivo.
As primeiras tentativas de Gould de reger uma orquestra o desencorajaram de prosseguir nessa atividade porque devia executar movimentos agitando os braços, o que lhe dava tensões musculares que comprometiam seu controle magistral do teclado. Todavia, graças ao seu domínio na arte da composição, tinha a mente de um regente, e no fim se repropôs a tentar ainda compilando listas de repertórios que compreendiam concertos para piano onde podia acompanhar-se a si próprio, através de uma gravação em mais de uma pista. Gould iniciou sua nova carreira de regente em julho de 1982 quando, com os membros da Sinfônica de Toronto, gravou a versão de câmera original do Idílio de Siegfried. Sua executação de estréia, posta em circulação pela primeira vez neste disco, revelou-se um adeus porque Gould, hipertenso crônico, foi vítima de um golpe de apoplexia no dia 4 de outubro seguinte, nove dias depois de seu cinquentário. “ Benjamin Folkman.
Pois bem, então deixo-os com este cd curioso porém de uma beleza ímpar, graças ao talento de Glenn Gould, com certeza um dos maiores músicos do século XX, e que não temia ousar.
Richard Wagner – Glenn Gould Conducts Wagner´s Siegfried Idyll
01 Siegfried Idyll, for small orchestra in E major, WWV 103
02 Die Meistersinger von Nürnberg, opera, WWV 96- Vorspiel Zum I. Aufzug
03 Die Götterdämmerung (Twilight of the Gods), opera, WWV 86d- Tagesgrauen Und Siegfrieds Rheinfahrt
04 Siegfried Idyll, for small orchestra in E major, WWV 103
Membros da Sinfônica de Toronto
Glenn Gould – Piano e Regência
FDP Bach
Link revalidado por FDPBach em 02/24
Hummmm, parece muito interessante!
Gosto de pessoas que se propõem a desafios.
Um delírio FDP, sempre achei a música de wagner fria,seca mais esta obra me persuadiu de uma forma avassaladora,queimei a língua.
Um dos melhores post do ano (se não o melhor) com tantas surpresas neste blog provindos de compositores que não conhecia absolutamente nada, um velho conhecido chamado Richard Wagner foi o responsável por me deixar de queixo caído.
Parabéns, mais que fabuloso.
Que bom que você gostou, William. Na verdade, a leitura de Gould para o Idilio é de uma beleza única, deixou o andamento mais lento, e extraiu nuances da melodia que dificilmente ouviríamos na versão para grande orquestra.
Já tinha ouvido esse CD, excelente.
Gould fez surgir um outro Wagner que não conhecíamos.
vejo que pessoas visitaram meu blog “subterrâneo clandestino” e passaram a visitar o blog.
Muito Obrigado por essa pérola, esse tesouro submerso!
baixei 2 vezes e as duas da erro ao descompactar e nao acho esse cd em lugar algum=(
Caro amigo,
A terceira faixa não descompacta:
03 Die Götterdämmerung (Twilight of the Gods), opera, WWV 86d- Tagesgrauen Und Siegfrieds Rheinfahrt.mp3.
O restante está perfeito, bastando apenas descompactar uma de cada vez.
Saudações,
Rubens
Obrigado por repostar este CD, PQP. Eu ainda o vi ontem no meu armário de cds, mas nem me passou pela cabeça verificar se os links do rapidshare ainda estavam ativos.
Que maravilhosa ideia a de reupar esse post, eu tinha perdido a primeira e nem sabia da existencia dessa joia. Parabéns.
Olá! Adoro seu trabalho e suas seleções, mas mais do que agradecer, gostaria de fazer um pedido encarecido – eu tinha o disco The Magic of the Proms da Royal Philarmonic, mas o cd rachou! procurei na internet e os links foram todos apagados. Vc tem ele? poderia upar????
por favor!!!!
Infelizmente não tenho esse cd Moisés.
Baixei e ouvi. Tudo normal.
128 kbps! 128 kbps! Não, 128 kbps ninguém merece!
Excelente observação. Concordo!
Poderias nos enviar a versão em 320 kbps? Agradecemos antecipadamente.
Eu já me contentava com essa versão de 128kbps; infelizmente, o servidor expirou
Ary, o link foi atualizado. Boa audição … é um disco muito especial.
Costumo ouvir a maior parte dos cd’s que baixo nesse blog enquanto leio os textos que são postados. E, assim como descrito, também achei curioso ouvir a obra de Wagner ao piano, com um acompanhamento mais reduzido. Mas foi uma grata surpresa. O disco é ótimo e mostra Gould muito inspirado. Valeu pela revalidação do link!