Essa semana a gente deveria ser arrogante como um portenho. Deveria ser literariamente perfeito como um portenho. Deveria só beber té con leche. E deveria manter profundo respeito pela música deles. Afinal, dia 11 comemora-se os 100 anos de nascimento de Astor Pantaleón Piazzolla (1921-1992).
O homem no centro da cena do filme abaixo é o argentino, uruguaio ou francês Carlos Gardel (1890-1935). E o menino de 13 anos que faz o papel de um jornaleiro e que está à esquerda na cena de El día que me quieras chamava-se Astor Piazzolla e era o filho único dos imigrantes italianos Vicente Piazzolla e Asunta Manetti que, anos depois, revolucionaria o tango argentino. Desnecessário dizer que esta cena possui um poderoso valor emblemático na história do tango. El día que me quieras foi filmado no ano de morte de Gardel e ali casualmente aparecia, ainda menino, aquele que, anos depois, viraria o tango de cabeça para baixo. Por que justamente o menino Astor foi figurante na película? Ora, o filme foi rodado em Nova Iorque, naquela época a família de Piazzolla morava na cidade, conhecia Gardel e, bem, o garoto estava disponível.
É claro que a maioria de nós não tem a mesma imagem do tango que os argentinos têm. Para nós, Piazzolla é a estrela internacional que é gravado tanto por pequenos grupos de tangueiros como por grandes orquestras sinfônicas ou de câmara, pois sua música efetivamente abarca o popular e o erudito, como tentaremos comprovar abaixo. Aos estrangeiros como nós surpreende ler, sempre associada a seu nome, a palavra Revolução. Por exemplo, a página oficial de Astor Piazzolla na Internet, onde consta sua biografia, começa com letras garrafais: Astor Piazzolla: Cronología de una Revolución, ou seja, a briga com os tangueiros tradicionais não foi esquecida e, quando lemos que os deuses de Piazzolla eram Bach, Stravinsky, Bartók e o jazzista Stan Kenton e, mais, que ele estudou com Nadia Boulanger na Paris dos anos 50, começamos a entender alguma coisa. Ele bebeu de tantas fontes que sua criação haveria de ser muito diversa do habitual.
Piazzolla nasceu em 11 de março de 1921 em Mar Del Plata e, quando tinha 4 anos, sua família mudou-se para Nova Iorque. Residiram nos EUA entre 1925 e 1936. Foi lá que, aos 8 anos de idade, ele ganhou de seu pai o primeiro bandoneón — , comprado numa loja de penhores por 19 dólares. Estudou o instrumento por um ano com Andrés DÁquila e aos 10 anos de idade, em 1931, realizou sua primeira gravação, Marionete Spagnol, um acetato não comercial resultado de uma participação radiofônica numa rádio de Nova Iorque. Em 1933, começou a ter aulas de piano com o húngaro Bela Wilda, discípulo de Rachmaninov, e sobre o qual Piazzolla diria mais tarde “Com ele, comecei a amar Bach”.
Retornou em 1936 com sua família para Mar del Plata, onde fez sua segunda grande descoberta, bem longe do barroco tardio de Bach. Ouviu no rádio o sexteto de Elvino Vardaro. A forma diferente que o sexteto tinha de interpretar tangos impressionou Piazzolla profundamente e levou-o a Buenos Aires em 1938. Tinha apenas 17 anos. Tudo foi muito rápido. No ano seguinte, já estava entrando como bandeonista na orquestra de Anibal “Pichuco” Troilo.
Sentindo a necessidade de avançar musicalmente — mesmo já sendo o arranjador da orquestra Troilo — , em 1941 tornou-se aluno do compositor erudito Alberto Ginastera e depois estudou piano com Raúl Spivak. Seus arranjos e obras tornaram-se avançados demais para Troilo, que obrigava-se a cortes e mais cortes de modo a não assustar os bailarinos na pista…
Em 1943, Piazzolla começou a escrever composições de caráter “erudito”, como a Suite para cordas, harpa e orquestra, e decidiu abandonar orquestra de Troilo a fim de participar de outra: a que acompanhava o cantor Francisco Fiorentino. Ficou nela até 1946, quando criou sua primeira orquestra. Ela tinha formação semelhante às outras orquestras da época, porém as composições e orquestrações tinham cada vez maiores complexidades harmônicas. Datam desta época as primeiras rusgas com os tangueiros tradicionais.
Em 1949, Piazzolla dissolveu a orquestra e voltou a estudar. Desta vez, seu foco era Bartók e Stravinsky. Estudou regência com o extraordinário maestro Hermann Scherchen e passou a ouvir a montanhas de disco de jazz. Torna-se obsessão a busca por um novo estilo, por um novo tango. Tinha 28 anos.
Entre 1950 e 1954 cria um grupo de obras inteiramente fora da concepção de tango da época e onde começa a definir seu estilo: Para lucirse, Tanguango, Prepárense, Contrabajeando, Triunfal, Lo que vendrá. Em 1953, inscreve Buenos Aires (Tres movimientos Sinfónicos) — trabalho de 1951 — no concurso Fabien Sevitzky. Vence o concurso e a obra é mostrada na Faculdade de Direito de Buenos Aires pela Orquestra Sinfônica da Rádio do Estado com a adição de dois bandoneóns, tudo sob a direção do próprio Sevitzky. Foi um enorme escândalo: o setor “culto” da plateia indignou-se em razão da presença de dois instrumentos estranhos e populares com a sinfônica.
Outro dos prêmios que Piazzolla ganhou neste concurso foi uma bolsa do governo francês para estudar em Paris com Nadia Boulanger, considerada na época como a melhor educadora do mundo da música. De início, Piazzolla tentou esconder seu passado tangueiro no bandeonón, pensando em tornar-se um compositor erudito. Mas a velha mestra descobriu seu tango Triunfal, ouviu-o, e fez a histórica recomendação: “Astor, suas peças clássicas são bem escritas, mas o Piazzolla está nisto que me mostraste”.
Convencido, Piazzolla retorna ao tango e a seu instrumento, o bandoneón. O que antes era música erudita ou tango, agora será música erudita e tango, ou melhor dizendo, música erudita sob a paixão do tango, ou o contrário… Em Paris, ele compõe e grava uma série de tangos com uma orquestra de cordas e passa a tocar o bandoneón em pé, com uma perna sobre uma cadeira, algo que iria caracterizá-lo para sempre e será mais uma incomodação para os tradicionalistas que o queriam sentado.
Quando Piazzolla retornou à Argentina em 1955 retomou a orquestra de cordas e também formou outro grupo, o Octeto Buenos Aires, que marca efetivamente o início da era do tango contemporâneo. Com dois bandonéons, dois violinos, baixo, violoncelo, piano e guitarra elétrica, produziu obras inovadoras e interpretações que produziram uma ruptura com o tango tradicional. Era uma música que fugia ao modelo clássico da orquestra de tango e onde não tinha espaço para o cantor. Começava sua revolução solitária e a inimizade eterna para com o pessoal do tango ortodoxo, despertando contra si as críticas mais impiedosas. As gravadoras e as rádios organizaram um boicote contra sua música, admirada apenas pelos vanguardistas.
Enquanto os eruditos foram rapidamente dobrados pela qualidade de sua música, os tradicionalistas criaram um problema de estado. Estavam mexendo no tango. Piazzolla não colaborava muito para a paz, mantendo sua postura e respondendo com ironias.
Cansado, em 1958, Astor “no es tango” Piazzolla dissolveu o octeto e a orquestra a fim de viajar para Nova York. Trabalharia como arranjador e viveria com maior conforto. Na Argentina, a controvérsia sobre se sua música seria tango ou não seguiu seu curso, mas agora seu sucesso no exterior começava a gerar intensa inveja entre a comunidade tangueira, o que não melhorava em nada o ambiente. Ele acenou com a possibilidade de paz chamado sua música de “música contemporânea da cidade de Buenos Aires”, mas continuava provocando com sua vestimenta informal e sua pose de tocar o bandoneón em pé (por que não senta?) e com suas respostas nada reverentes.
Entre 1958 e 1960, trabalhou nos EUA. Lá, escreveu Adiós Nonino, homenagem a seu pai que morrera. Ao retornar, forma o primeiro de seus grandes quintetos, o Nuevo Tango (bandoneon, violino, piano, baixo e guitarra). A partir de então, o quinteto seria o formato preferencial — era a síntese que melhor expressava suas ideias.
É de 1963 a peça Três Tangos Sinfónicos e de 1965 a gravação de dois de seus discos mais importantes: Piazzolla en el Philarmonic Hall de Nova York e El Tango, resultado de uma parceria com Jorge Luis Borges.
Em 1968, compõe a “pequena ópera” María de Buenos Aires e, pela primeira vez chega ao tango canción. Não é casual que isto ocorresse durante seu namoro com a cantora Amelita Baltar. No ano seguinte, compõe com Horacio Ferrer Balada para un loco, canção de alta temperatura emocional apresentada no Primeiro Festival da Canção da América Latina, onde foi premiada com um muito polêmico segundo lugar. Foi seu primeiro grande sucesso popular. Amelita Baltar costumava cantar a canção tendo o próprio Piazzolla com regente de orquestra.
Mais um ano e é a vez do oratório El Pueblo Joven, cuja estreia acontece em Saarbruck (Alemanha) em 1971. Nesse mesmo ano, ele formou o Conjunto 9, atuando em Buenos Aires e na Itália, onde gravou vários programas para a RAI. Este grupo foi como um sonho para Piazzolla: o grupo de câmara que ele sempre quis ter e para o qual produziu sua música mais elaborada. Porém era muito caro e Piazzolla não conseguiu mantê-lo.
Em 1972, seu tango chegou ao Teatro Colón em Buenos Aires, mas junto com o tango tradicional. No ano seguinte, após um período de grande produtividade como compositor, teve um ataque cardíaco que o obrigou a reduzir suas atividades artísticas.
Reduziu, pero no mucho. Naquele mesmo ano, decidiu mudar-se para a Itália, onde empreendeu inacreditável série de gravações. Foram 5 anos. Libertango, seu disco mais famoso, é desta época e serviu como carta de apresentação para o público europeu, que nunca mais o largaria.
Durante esses anos, forma o Conjunto Electrónico: um octeto formado por bandoneón, piano elétrico ou acústico, guitarra, órgão, baixo elétrico, bateria, sintetizador e violino, mais tarde substituído por flauta ou saxofone. Era algo muito original e alguns falam em jazz-rock. Mas Piazzolla negava: “Aí está minha música, muito tango e nada de rock”.
Em 1974, separou-se de Baltar. Naquele mesmo ano, gravou com o saxofonista Gerry Mulligan um outro grande disco: Summit, com uma orquestra italiana. A música que Piazzolla compôs para este disco revela profundo respeito pela forma. São melodias para bandoneón e sax barítono sobre uma base rítmica, obra feita por ele e um gigante do jazz, Mulligan. Um esforço muito bem sucedido.
Os dez anos seguintes são de colheita. Ele intensifica seus shows em todo o mundo: Europa, América do Sul, Japão e Estados Unidos. A série de concertos é feita em sua maioria com o quinteto ou como solista de orquestras de câmara. Existem inúmeras gravações ao vivo desses concertos, em CD. Na época, dizia-se que a música de Piazzolla não existia sem ele, o que hoje é apenas uma piada.
Em 1982, escreve Le Grand Tango para Violoncelo e Piano, dedicado ao violoncelista russo Mtislav Rostropovich e, fi-nal-men-te, em 1983, o Teatro Colón de Buenos Aires, o local da música clássica na Argentina, convida-o para um concerto inteiramente dedicado a sua música. Para a ocasião, ele reúne o Conjunto 9 e sola em seu célebre Concerto para bandoneón e orquestra. Vencera os argentinos. Ou contornara os tradicionalistas.
No final da década de 80, Piazzolla lança mais uma extraordinária série de discos, desta vez nos EUA de sua infância: Tango Zero Hour, Tango Apasionado, La Camorra, Five Tango Sensations (com o Kronos Quartet), Piazzolla con Gary Burton, etc.
Em 1988, poucos meses após a gravação do que seria o último registro com o quinteto La Camorra, recebe quatro pontes de safena. Seguem os concertos até 4 de agosto de 1990, em Paris, onde sofre um acidente vascular cerebral. Morre em Buenos Aires em 4 de julho de 1992.
Hoje, basta caminhar pelas ruas de Buenos Aires para ouvir Piazzolla. Pode não ser uma música de sua autoria, mas sentimos sua presença. A notável forma como os músicos eruditos adotaram sua obra é também digna de nota, mas ela também influencia músicos populares como os japoneses do mama!milk…
eruditos brasileiros…
o multinacional nascido em Paris Gotan Project…
E os argentinos do Escalandrum, sensacional grupo do neto Daniel Piazzolla (baterista).
Com contribuições do site http://www.piazzolla.org/, de onde alguns trechos foram simplesmente traduzidos, e de muitas outras fontes que não saberia precisar.
Ótimo