Um dos mais curiosos subprodutos da treta envolvendo o finale original do Quarteto Op. 130, doravante denominado “Grande Fuga”, foi esta transcrição para piano feita, no que a tornaria por si só muito especial, pelo próprio Beethoven.
No início de 1826, o editor Artaria preparava em suas oficinas a publicação do Op. 130, estreado no ano anterior com boa acolhida para cinco de seus seis movimentos, exceto a gigantesca e largamente incompreendida fuga final. A ideia de substituí-la por um final mais convencional não tinha sequer sido trazida à tona quando Artaria perguntou a Beethoven se poderia fazer-lhe um arranjo da fuga para piano a quatro mãos. Arranjos assim eram de praxe para a divulgação de música orquestral e de câmara, que assim poderia ser ouvida em qualquer lugar onde houvesse um piano e dois pianistas, e eram lançados pouco depois das obras de referência. A alegação do editor era de lhe tinham manifestado interesse, mas a proposta não veio acompanhada de remuneração interessante, então Beethoven lhe deu de ombros e Artaria solicitou pediu a outro compositor que lhe fizesse a empreitada. Quando a transcrição foi mostrada a Beethoven, este indignou-se com o que considerou simplificações e concessões a amadores e resolveu ele próprio fazer, em tempo recorde, sua transcrição bastante literal da obra, que acabou publicada após sua morte sob o Op.134 e com o mesmo dedicatário da “Grande Fuga” para quarteto de cordas – o arquiduque Rudolph.
Essa história toda é muito esquisita, pois seria improvável que uma obra tão unanimemente detestada por seus contemporâneos fosse suscitar solicitações de seus arranjos ao editor, se nem hoje, em tempos que veem a “Grande Fuga” ser considerada um dos pináculos da Música de concerto do Ocidente, nós ouvimos o Op. 134 executado com frequência, e muito menos neste ano de jubileu de Beethoven. Houve sugestões de que essa fosse tão só a estratégia de Artaria para, comendo pelas bordas e evitando confrontos diretos com o irascível compositor, tentar convencê-lo a publicar a “Grande Fuga” em separado.
Se foi isso mesmo, funcionou: Beethoven fez seu arranjo com evidente zelo, sem nada facilitar para os executantes (e ele não poderia se preocupar menos com isso) e, pelo jeito, constatou que aquele finale monumental poderia ter, sim, vida própria. Não se sabe ao certo quem estreou o arranjo, nem quando isso aconteceu. O fato é que ele é pouquíssimo tocado e gravado, salvo na proximidade de jubileus como o de agora. Entre o punhado de gravações novas que ouvi do Op. 134, uma das que mais me atraiu foi a do duo húngaro Izabella Simon-Denes Várjon. Neste álbum, a “Grande Fuga” encerra uma procissão de obras bem diversas para duo pianístico, começando pelos estudos que Schumann escreveu para o piano com pedaleira, no surpreendente arranjo de Debussy, passando pelo grande duo “Lebenssturme” de Schubert e por um dos mais óbvios frutos do devotado estudo que Mozart fez da obra de Bach, a Fuga K. 401. Embora prefira a versão original, com seus ataques furiosos às cordas e todo colorido tonal de quatro instrumentos incandescentes, reconheço que o arranjo de Beethoven lhe dá mais clareza e transparência. Simon e Várjon – que, a julgar pela pose arrulhante na capa do álbum, devem dividir além do teclado também os lençóis – saem-se muito bem, quase a ponto de agradecermos a Artaria por sua convoluta tentativa de manipulação.
Ponto para Artaria, e parabéns aos músicos. Merecem os lençóis.
Vassily
Estou entre os poucos doidos que apreciam não só a Grosse fuge para dois pianos quanto os estudos canônicos de Schumann. Obrigado pela recomendação de mais este CD!
A fuga de Mozart, não me lembro se ouvi ela antes. Esse aspecto de Mozart é bem pouco conhecido. John Stone relata que em 1782, recém-chegado a Viena (provavelmente com acesso a melhores bibliotecas), Mozart começa a falar de fugas em suas cartas. Explica a seu pai que coleciona fugas da família Bach e pede que lhe envie fugas de Haendel e Eberlin, para mostrá-las nas reuniões dominicais do barão von Swieten. Compõe o quarteto K 387 com contraponto no final, o prelúdio e fuga K 394.
Isso tudo quem diz é John Stone (in: Dicionário Mozart, org. Landon). Acrescento que essa influência aparece nos primeiros concertos vienenses para piano (11 a 13) e depois disso, se dilui no rio mozartiano, sem nunca sumir (fantasia K608, Requiem…)
Andei ouvindo as Sonatas para Piano de Mozart e lendo algumas coisas sobre elas. Veja este trecho: After the composition of the great C minor Sonata there is a turning point in Mozart’s sonata output. His writing assumes more subtlety, and a more pronounced inclination to contrapuntal writing – as in the first two movements of the F major Sonata K. 533. (Mozart himself later added the F major Rondo K. 494 as a third movement for this sonata).
Esse ‘contrapuntal writing’ é certamente resultado deste encontro de Mozart com as obras de Bach e similares…
Vale a pena ouvir a sonata…
Abração!
RD
Os dois pianistas são casados sim. Tá na cara…