BOM, MUITO BOM !!!
Música de Câmara do Brasil é um álbum todo ele moderno, de vanguarda, como bem representa a sua capa com um d’Os Bichos, obra-mestra da artista plástica neoconcretista Lygia Clark (1920-1988). As peças são todas de compositores brasileiros de primeiríssimo time também contemporâneos e que estavam, no ano dessa gravação (1981), em plena atividade, executadas pelo Trio Morozowicz, Botelho, Devos com grande qualidade e sagacidade.
Eu poderia falar uma pouco mais do discão, mas o texto da contracapa é muito mais detalhista (e capaz) que o que eu poderia escrever neste espaço:
Bela montagem, a deste disco, intercalando, entre obras executadas pelo trio de sopros, peças solistas para cada um dos instrumentistas que, individualmente, confirmam a alta qualidade de suas interpretações conjuntas. Norton Morozowicz, Jose Botelho e Noel Devos são três de nossos mais destacados músicos, com uma larga folha de serviços prestados a divulgação do repertório internacional e do brasileiro. Os três instrumentos – flauta, clarineta, fagote — tem amplos recursos expressivos, que compensam largamente a relativa estreiteza de seu âmbito dinâmico. Da alquimia de suas vozes resulta harmonioso conjunto, onde as peculiaridades individuais se fundam num todo maior.
O primeiro lado [faixas 01 a 09] reúne quatro dos expoentes da corrente nacionalista. Dois deles (Camargo Guarnieri e Francisco Mignone) foram diretamente influenciados pela pregação de Mario de Andrade, a quem os ligou amizade e reconhecimento que os anos passados não desvanecem. A influência de Mario marcou também fundo a obra de Guerra-Peixe, embora não ligado pessoalmente ao autor de Macunaíma. Nos quatro músicos, um caminhar inicial análogo na formação musical, passando pela escola pratica dos conjuntos populares. O ideal nacionalista, antes mesmo de sua sistematização por Mario, fora posto em pratica por Villa-Lobos com vigor muito major que o de seus predecessores. Bem relacionado, espirito irrequieto, amigo das viagens, voltado para o mundo e para o mercado externo. Villa-Lobos funcionou como grande desbravador, polarizando a celeuma sobre a música brasileira em torno de sou nom. Quando aqueles quatro músicos começaram a produzir, encontraram o caminho por assim dizer aberto, e ficaram, de certo modo, com o ônus de serem vistos como continuadores — o que foi recentemente observado por Maria Abreu, em programa de televisão, com relação a Camargo Guarnieri. Todos eles são, porém, personalidades originais, que vivenciam diferentemente a problemática envolvida pela estética nacionalista através de suas próprias experiências e sensibilidades.
O segundo lado deste disco [faixas 10 a 16] reúne compositores mais recentes, menos ligados a problemática nacionalista. Mauro Rocha foi uma esperança: morto no inicio de 1980 em acidente automobilístico, aos 30 anos, destacou-se como violonista e arranjador ligado a música popular, com seu excelente conjunto de choro Galo o Preto. Abandonando a medicina para dedicar-se inteiramente a música, estudou com Esther Scliar, e fez cursos com Marlos Nobre, Koellreutter, Widmer, Rufo Herrera. É curioso, considerada sua ligacao com música popular, observar que sua biografia não indica, a meu conhecimento, nenhum professor ligado ao nacionalismo. Já Henrique de Curitiba passou do ensino de Bento Mossurunga para o de Koellreutter, aperfeiçoando-se depois em Varsóvia, e divide atualmente seu tempo entre a composição e o ensino. Heitor Alimonda, doze anos mais velho que o precedente, é, sobretudo, o pianista e o didata: boa parte de sua obra resulta de suas preocupações como professor de piano, muito embora ele também crie outras com preocupação apenas artística.
O Trio de Guerra-Peixe é breve, incisivo, vivaz em seus movimentos de dança. A maior extensão do terceiro movimento justifica-se polo andamento moderato, lírico e envolvente, onde a vivacidade rítmica continua presente, porém, em particular nos suspiros interrompidos do fagote; José Siqueira prefere chamar sua obra de Três invenções — de um espirito diferente daquele do autor das Bachianas. As 5 Peças breves de Heitor Alimonda retomam a clássica independência do texto musical com relação aos instrumentos que o executarão. Outro poderia ser o conjunto, inclusive o trio de cordas; mas as diferenças tímbricas desse trio de sopros ajudam a realçar os movimentos de cada frase musical.
Henrique de Curitiba é mais ambicioso — e se me estendo mais sobre sua obra, é em função de observações acrescentadas pelo autor da partitura. Seu Estudo é aberto em vários níveis. Ele quer que os intérpretes abandonem a tradicional posição sentada; com a finalidade de “explorar o efeito estereofônico que se possa conseguir com ativação variada das três fontes sonoras. A movimentação dos músicos (…) deve proporcionar uma nova experiência de comunicação corporal com o público (…) além dos aspectos interpretativos puramente musicais”. Na realidade, o disco tem contribuído para acentuar a ideia de “música pura” — e, o que é pior, “sem erros”, pois, em principio, a gravação não toleraria as falhas dificilmente evitáveis em concerto. Mesmo na música para “instrumentistas sentados” e “inteiramente escritas”, é, porem, flagrante a diferença de comunicação dos músicos com o ouvinte, se este está em sua poltrona tomando seu uísque ou numa sala de concertos vivendo com outros ouvintes as emoções que só o momento de recriação do interprete pode suscitar. Não se pode esperar de um pianista que passeie de um lado para outro com seu Steinway, tocando uma sonata de Beethoven; mas, certamente, as diferentes posições relativas dos executantes, consideradas as acústicas das diferentes salas, podem trazer novas dimensões para a execução ao vivo, em obras que levem em conta aqueles fatores.
Henrique de Curitiba solicita também de seus intérpretes “a improvisação livre à maneira da música popular” em alguns dos trechos desse Estudo. E, enfim, outra observação de grande interesse: “o compositor experimenta ainda com a grafia musical convencional, tentando uma grafia rítmica das figurações musicais da música brasileira, adotando o conceito de tempos de duração desigual dentro de um mesmo compasso, evitando assim uma escrita do tipo sincopado, com metro regular, a qual não traduz bem o balanço da música brasileira”. O Pe. Jose Geraldo de Souza já tinha observado, em obra sobre as características de nossa música folclórica, o caráter bem mais fluido do sincopado popular que o que pode ser dado pela “sincope característica” sistematizada, um tanto abusivamente, pela forma: semicolcheia, colcheia, semicolcheia; colcheia, colcheia; é de se salientar que nesse erro, não incidiram nossos melhores autores, que buscaram outras formas de grafar a sincopado popular.
As diferenças que marcam os quatro trios encontram-se, também, em pelo menos duas das obras solistas. Mignone passeia livremente, liricamente, em sua valsa sem caráter, pelo espaço melódico do fagote. O caráter geral descendente da melodia mantem-se nas três partes dessa obra, a última das quais abre-se para um esplendoroso modo maior, bem dentro da tradição, e acaba com um irônico abaixamento de tom na repetição de um motivo. Já Camargo Guarnieri tem uma preocupação ascendente, tensionante, como se quisesse romper com os limites sonoros da flauta, fazendo-nos ouvir notas além, mais para o agudo, daquelas que o instrumento pode dar. O espaço sonoro é aberto, tanto através de grandes saltos, como por meio de sua ampliação sucessiva a partir de um tom, e os momentos de lirismo ficam, em geral, com os registros médio e grave do instrumento. Em Mauro Rocha, está também presente uma certa tensão, obtida, porem, sobretudo pelo uso de material sonoro ainda não assimilado pela audição corrente. (Flavio Silva)
Um disco de música inteligente, difícil, complexa e brasileiríssima. Vale muito a pena conhecer!
Trio Morozowicz, Botelho, Devos
Música de Câmara do Brasil
César Guerra Peixe (1914-1993)
01. Trio nº2 – I. Allegretto (polca)
02. Trio nº2 – II. Allegro Vivace (dança dos caboclinhos)
03. Trio nº2 – III. Moderato (canção)
04. Trio nº2 – IV. Allegro (frevo)
Mozart Camargo Guarnieri (1907-1993)
05. Improviso nº3 para flauta solo
José Siqueira (1907-1985)
06. Três Invenções, para flauta, clarinete e fagote – I. Allegro
07. Três Invenções, para flauta, clarinete e fagote – II. Andante
08. Três Invenções, para flauta, clarinete e fagote – III. Moderato
Francisco Mignone (1897-1986)
09. Macunaíma, valsa sem caráter
Henrique de Curitiba (1934-2008)
10. Estudo Aberto, para flauta clarinete e fagote
Mauro Rocha (1950-1980)
11. Variações para clarinete solo
Heitor Alimonda (1922-2002)
12. Cinco Peças Breves para Três Instrumentos Melódicos – I. Andante Cantabile
13. Cinco Peças Breves para Três Instrumentos Melódicos – II. Allegro molto
14. Cinco Peças Breves para Três Instrumentos Melódicos – III. Andante movido, porém monótono
15. Cinco Peças Breves para Três Instrumentos Melódicos – IV. Molto allegro
16. Cinco Peças Breves para Três Instrumentos Melódicos – V. Lento – Andante
Norton Morozowicz, flauta
José Botelho, clarinete
Noel Devos, fagote
Rio de Janeiro, 1981
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE (136Mb)
…Mas comente… O álbum é tão bom, merece umas palavrinhas…
Partituras e outros que tais? Clique aqui
Bisnaga
muito bom o CD.
Essas postagens – de compositores menos conhecidos e executados -, as considero as melhores. Não que me desagrade Bach, Mozart, etc e tal. Mas é que se não fossem essas postegens nunca conheceria nenhum desses que aí estão, talvez Gerra Peixe e Francisco Mignone, uma coisa ou outra, talvez nem me interessaria, e seria eternamente privado do prazer de ouvi-los, preso na ignorancia da cultura de massa.
É justamente postar compositores da “periferia” que mais me agrada. Trazer algo diferente, partilhar registros menos conhecidos.
Muito legal!
e também aprecio muito o mediafire!
Concertezamente (inventei agora), o álbum é muito bom. Como não podia deixar de ser, especialmente tratando-se das postagens do Bisnaga. Mas, cá entre nós, Guerra Peixe… ô nomezinho… rsrs
O nomezinho era desgraçado, realmente, mas o Guerra Peixe foi um senhor compositor.
Reconheço o enorme valor de todos estes compositores e das obras, de verdade mesmo. Mas confesso que achei tudo muito chatinho… Talvez não tenha alcançado a proposta.
Legal; tive uma aula com Alimonda durante um festival de música lá em Cascavel/PR onde eu morava, depois o encontrei novamente uns meses antes da morte dele durante minha faculdade.