Por CELSO LOUREIRO CHAVES,
publicado na Zero Hora de 20 de dezembro de 2008
Este mês, centenários de dois compositores incontornáveis da música de concerto: o francês Olivier Messiaen, de 10 de dezembro de 1908, e o norte-americano Elliott Carter, de 11 de dezembro de 1908. Dois centenários com uma distância enorme entre eles – Messiaen morreu em 1992 e portanto sua obra é um livro fechado, o que havia para ouvir foi ouvido, o que havia para descobrir foi descoberto; Carter não só continua produzindo sem cessar como tem participado das comemorações do seu próprio centenário. Há quem diga: que um compositor participe do próprio centenário já é uma façanha, mas que componha uma peça para marcar a data não tem precedentes na história da música. Elliott Carter é o exemplo mais lúcido da atemporalidade na composição musical, a possibilidade de criar sons em qualquer idade, a prova de que um compositor pode ser muitos, mesmo nos limites de uma única vida.
Por um momento Messiaen e Carter cruzaram seus caminhos. Foi no final dos anos 1940, o mundo musical ainda cambaleante depois da guerra. Messiaen tinha acabado de compor uma das suas obras mais monumentais, a sinfonia Turangalîla, e subitamente lhe veio a vontade de criar miniaturas que, no seu rigor composicional, abriram a porta para a vanguarda européia dos anos 1950. Essa foi a importância dos seus Quatro Estudos de Ritmo e também foi ali naqueles anos de mudança que Elliott Carter, já com sinfonias, canções e balés no currículo, decidiu abandonar um “eu” para alcançar um outro “eu”, para se tornar… Elliott Carter. Modernista inflexível e rigoroso, compositor de obras difíceis de tocar e ásperas de ouvir, obras profundas e racionalizadas no mínimo detalhe das decisões musicais.
A partir de caminhos absolutamente pessoais, Carter e Messiaen seguiram escolhas próprias e foram criando um repertório vasto de obras nas quais se tropeça uma e outra vez quando se percorre o panorama da música de concerto a partir de 1940. É que tanto Carter quanto Messiaen construíram idiomas musicais muito característicos que permitem identificar suas obras logo ao primeiro som, com retóricas inconfundíveis e impossíveis de resistir. Em Messiaen é a individualidade da harmonia que surpreende e cativa, os seus acordes – uns diferentes dos outros sem nada que os una – e o seu som granítico, diria o poeta Mallarmé. De repente há espaços que se abrem para melodias amplas que são ou celestiais ou simplesmente bregas, não há meio termo. Tudo envelopado numa orquestração luminosa e exagerada que não raro lança mão das ondas martenot, instrumento eletrônico que Messiaen fundiu à orquestra sinfônica.
Na música de Carter são o pontilhismo dos sons e as intricações de ritmo que agarram o ouvinte e não o deixam tomar distância da obra ouvida. Melodias não há e nem harmonias que se possa identificar como tal. Há jogo de densidades sonoras, alternâncias de cores, superfícies ásperas, rugosas, raramente lisas, que se misturam e se superpõem. Quando então Carter se volta para a voz humana, é nos poetas de sua geração que ele vai buscar guarida. Aí os poemas de Elizabeth Bishop, Robert Frost e William Carlos Williams soam na sua música. Mesmo quando não claramente articulados em som, os poetas norte-americanos são o alicerce da música de Carter – Hart Crane e seu À Ponte do Brooklyn são sombras que se escondem na Sinfonia de Três Orquestras, obra central da música para orquestra de Carter.
Também em Messiaen há textos que se escondem atrás da música e que surgem nos títulos que vão pontuando o catálogo de obras: Vinte Olhares Sobre o Menino Jesus, A Transfiguração de Nosso Senhor Jesus Cristo, Meditações Sobre o Mistério da Santíssima Trindade, Cores da Cidade Celeste. Pois para Messiaen os mistérios da fé católica são a fonte principal de irrigação da música, algo que agrada a muitos e desgosta outros tantos. O fio da navalha entre bom gosto e mau gosto é ultrapassado várias vezes no contexto dessas obras que, se discutíveis, são indiscutivelmente sinceras, ainda mais quando a religiosidade de Messiaen se une ao amor à natureza e, nela, ao amor verdadeiramente franciscano aos pássaros que povoam a sua obra. Foi Messiaen quem compôs um Catálogo dos Pássaros e colocou uma multidão de aves – brasileiras, inclusive – na sua mais gigantesca obra para orquestra, Dos Cânions às Estrelas.
Quando morreu, Messiaen ainda se recuperava da tarefa monumental de compor sua única ópera, São Francisco de Assis que, em quatro horas e oito cenas exaltadamente estáticas, conta a vida do santo que simboliza o catolicismo que o compositor conheceu por dentro. Líder de uma geração de vanguardistas – Boulez, Xenakis, Stockhausen – ao longo da vida Messiaen veio se afastando das vanguardas e, ao morrer, encerrou uma obra imensa marcada pela espiritualidade e que nunca fugiu das banalidade inevitáveis quando as sonoridades são tão exuberantes. Para que fugir? Logo numa de suas primeiras obras, o Quarteto para o Fim do Fempo, Messiaen fez soar as trombetas do juízo final. Depois disso, quem se importaria com críticas?
Críticas também nunca foram problema para Elliott Carter desde que ele se transformou nele mesmo em 1948. As suas obras foram se espalhando em todas as direções, marcando gênero a gênero. O Concerto para Orquestra, as Fantasias Noturnas, peça que ampliou o repertório de gestos do pianista, o monumental Concerto Duplo para Piano, Cravo e Orquestra e a série dos cinco quartetos de cordas. Só esse grupo de peças já seria influente por si só, pelos caminhos que apontam no tratamento das sonoridades e na transformação da vitalidade em som. O que mais surpreende, no entanto, é a nova arrancada de criatividade que Carter deu à sua música a partir dos noventa anos. A primeira ópera foi composta há pouco, a primeira peça para grupo de percussão estreou semana passada e o terceiro concerto para piano e orquestra, Intervenções, foi reservado para o dia do centenário. Todas obras de uma agressividade seríssima, algo inédito para um compositor em atividade há 72 anos.
Até quando irá a música de Elliott Carter? Não se sabe e o melhor seria perguntar até onde irá essa música que começou mansa, se tornou irredutível na obediência ao próprio estilo e que agora, nas obras de hoje, quase assusta pela vitalidade e pelo movimento incessante. Foi assim também com Olivier Messiaen que, das exuberâncias dos anos 1940 se transformou no monumento mais alto da música cristã. São os dois compositores centenários da semana. Um já é estátua e sem ele não se conta a história da música francesa. O outro ainda está aí, prestigiando sempre os concertos que o prestigiam. Vale, para marcar esse duplo centenário e para localizar as buscas incessantes da música de um e de outro, uma frase de William Carlos Williams que Carter transformou em música em Of Rewaking, obra de 2002: “cedo ou tarde devemos chegar ao fim de toda a luta… mas ainda não, tu dizes, estendendo o tempo indefinidamente.”
“Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tem absoluta necessidade.” (Gilles Deleuze)
Acho que ambos aí fazem jus à essa frase.
Abraços e um bom começo de ano para todos!