Se já tão pouco se ouve a música de concerto contemporânea nos palcos e plataformas mundo afora, escuta-se ainda menos a obra de suas compositoras – e se Gubaidulina, amplamente considerada a maior entre as que vivem, é menos ouvida que merece e mais admirada que apreciada, que se dirá duma compositora já falecida, que viveu seu período mais produtivo sob o jugo duma ditadura que reprimiu a vanguarda artística de seu país?
Nascida na mesma Bucareste em que passou toda sua vida, a extraordinária Myriam Marbé viveu os duríssimos tempos da Romênia entre guerras, do desastroso alinhamento com o Eixo na Segunda Guerra e, por fim, do isolamento duma ditadura paranoica. Parte da “Geração de Ouro” de compositores romenos – aquela, entre outros, de Ștefan Niculescu e Anatol Vieru -, Marbé estudou com muito interesse a música folclórica de seu país e, tanto quanto pôde, o que faziam seus colegas no restante da Europa, através de partituras e gravações que cruzavam secretamente aquelas estritas fronteiras. Sustentou-se como pianista, editando filmes (!) e dando aulas no Conservatório de sua cidade natal, ainda que nunca tenha conseguido efetivar-se em seu corpo docente devido à recusa em filiar-se ao Partido Comunista. Pelo mesmo motivo, suas composições só eram conhecidas na Romênia em círculos muito restritos, praticamente secretos, pois nada que não fosse aprovado pela Comissão Estatal para Regulamentação da Criação Artística podia ser ouvido em público, e a filiação ao Partido era pré-requisito para tal. Essas imensas dificuldades de congregação, talvez, explicam a notável individualidade de estilos dos compositores daquela vanguarda romena, entre os quais a voz de Marbé é, decididamente, uma das mais distintas.
Mesmo ante tanta repressão, os membros da “Geração de Ouro” foram professores profundamente influentes, e seus alunos que emigravam traziam consigo quase tudo o que o resto do mundo deles soube por muito tempo. As poucas e invariavelmente curtas viagens que Marbé foi autorizada a fazer, sob vigilância estrita de agentes do governo, foram suficientes para que suas obras fossem recebidas com entusiasmo e crivadas de prêmios em outros países, sobretudo na Alemanha. Seu estilo único, inspirado em estruturas arcaicas, no folclore romeno e nas ricas tradições do canto bizantino, explora as possibilidades tímbricas de conjuntos instrumentais muito peculiares e experimenta com a disposição espacial de seus integrantes. Suas obras são praticamente desprovidas de grandes gestos e cacoetes, e tudo soa tão radicalmente livre que parece buscar a abolição do compasso e da própria métrica. Ainda assim, suas composições parecem-me, se me permitem o jogo de palavras, mais extáticas que estáticas e, muito mais que acabar, simplesmente evanescer.
Fui apresentado à sua esplêndida arte através da obra que abre o álbum duplo que lhes trarei a seguir, gravado durante um seminário em sua memória, e que reúne composições de Marbé e de alguns de seus alunos e colaboradores. Eu nada sabia de Trommelbass antes de escutá-la pela primeira vez, e por isso mesmo ela levou-me à lona. Da estranheza trazida pelo seu título (que não traduzirei, para poupar a quem puder de spoilers) a quem inicialmente só escuta o áspero tecido do trio de cordas, até o momento em que o título se justifica e, antes que nos recuperemos da surpresa, percebamos a peça dissipar-se no Éter, a jornada impressiona tanto quanto o contraste entre o impacto que ela nos causa e os sucintos recursos instrumentais empregados. As peças seguintes nada ficam a lhe dever. Adoro Le Jardin Enchanté (“O Jardim Encantado”), aqui executada por sua dedicatária, Carin Levine, que explora os timbres de toda família das flautas, do flautim à flauta contrabaixo, à qual se somam alguns instrumentos de percussão, também a cargo da flautista, dispostos em oito locais diferentes. Le Parabole du Grenier (“A Parábola do Sótão”, uma referência ao “Tratado de Objetos Musicais” de Pierre Schaeffer) também foi composta para um multi-instrumentista, que aqui se reparte entre piano, cravo, celesta, glockenspiel e, ainda, carrilhão. After Nau homenageia Nausicaa, filha única de Myriam, que viveu exilada durante os últimos anos da ditadura de Ceauşescu, com uma rica trama tecida por violoncelo e órgão, a inconfundível exploração tímbrica marbeiana e um notável trabalho de transfiguração (bem mais que variação) de seus temas. Song of Ruth (“Canção de Rute”), uma de suas últimas obras, lança mão de um quinteto de violoncelos para entoar uma salmódia sefardita num estilo afeito ao da Europa Ocidental, numa referência tanto à história bíblica da moabita que veio viver como estrangeira entre os israelitas, quanto às raízes do pai de Marbé, um médico microbiologista que (nenhuma surpresa) quis que ela também fosse médica, do que foi salva pela mãe pianista. Acima de todas, é Le Temps Retrouvé (“O Tempo Reencontrado”) sua composição que mais me entusiasma. O título remete ao último tomo de “Em Busca do Tempo Perdido” de Proust, e o tempo reencontrado, nas palavras da própria compositora, é aquele “livre e longo, que se desenvolve vagarosamente, e não é governado por qualquer indicação específica de andamento, nem por proporções métricas”. Escrita para um coro de voz, flauta doce e violas (de braço e da gamba) na companhia dum cravo, é duma beleza acachapante e, para mim, a mais emblemática dessa mestra maior da Música do século XX. A grandeza e sua obra e sua corajosa resistência a um regime totalitário justificam sua escolha para receber, em nome de todas as mulheres e de suas tantas lutas, nossa homenagem nesse 8 de março – e também, assim esperamos, a atenção de nossos leitores-ouvintes.
Myriam Lucia MARBÉ (1931-1997)
1 – Trommelbass (1985), para trio de cordas e tambor
Katharinen-Trio
Andreas Csibi, tambor
2 – Le Jardin Enchanté (1991), para flautas e percussão ad libitum
Carin Levine, flautas transversas
3 – Le Parabole du Grenier (1975-76), para um intérprete
Cristian Niculescu, piano, cravo, celesta, glockenspiel e carrilhão
4 – Le Temps Retrouvé (1982), para mezzo-soprano, flauta doce, três violas, violas da gamba contralto e tenor e cravo
Maria Jonas, soprano
Jeremias Schwarzer, flauta doce
Thomas Beimel, Larissa Gromotka e Sebastian Thien, violas
Verena Kronseder e Michael Vebert, violas da gamba
Oscar Milani, cravo
Volker BLUMENTHALER (1951)
1 – Tableaux fugitives (1988) para contralto e orquestra de câmara, sobre texto de Charles Baudelaire
Marion Steingötter, contralto
Kammerensemble der Musikhochschule Nürnberg-Augsburg
Franz Killer, regência
Dinu GHEZZO (1941-2011)
2 – Footsteps of Cassandra (1996), para eletrônicos e três intérpretes
Dinu Ghezzo, piano
Jeremias Schwarzer, flauta doce
Guenter Priesner, saxofone
Thomas BEIMEL (1967-2016)
3 – SAETA (1998), para seis vozes femininas
Vokalsextett der Musikhochschule Nürnberg-Augsburg
Bernd Dietrich, regência
Myriam MARBÉ
4 – After Nau (1987), sonata para violoncelo e órgão
Cornelius Boensch, violoncelo
Gunther Rost, órgão
Violeta DINESCU (1953)
5 – Zeitglocken für Myriam (2000), para duas vozes e conjunto instrumental
Anne-Marie Wirz, declamação
Maria Jonas, mezzo-soprano
Trio Diritto, flautas doces
Carin Levine, flauta transversa
Verena Kronseder e Michael Weber, violas da gamba
Thomas Beimel, Larissa Gromotka e Sebastian Thien, violas
Oscar Milani, cravo
Myriam MARBÉ
6 – Song of Ruth (1997), para cinco violoncelos
Violoncelloquintett der Musikhochschule Nürnberg-Augsburg
Gravações realizadas entre 18 e 21 de novembro de 2000 na Igreja Santa Martha em Nürnberg, Alemanha, durante o simpósio “Myriam Marbé”, organizado pela Escola Superior de Música Nürnberg-Augsburg.
Meus agradecimentos ao colega itadakimasu, que não só me alcançou gentilmente uma cópia desse raro álbum como também a mim confiou sua divulgação neste blog.
Vassily