A última ópera de Mozart foi um dos grandes sucessos de público de sua carreira, talvez o maior de todos, com a marca de 100 apresentações sendo batida em pouco mais de um ano, quando o compositor já havia passado desta pra melhor. O que explica esse sucesso? A comoção com a morte do gênio pesa um pouco, claro, mas também as primeiras performances – das quais a primeira, em setembro de 1791, teve Mozart como regente – já haviam sido sucessos gigantes. Tenho uma teoria: nesta ópera, como em pouquíssimas obras, ele conseguiu formar uma unanimidade ao agradar a públicos muito diversos: quem gosta de árias difíceis tem aqui aquela que é talvez a mais famosa, virtuosa e atlética ária para uma voz feminina em toda a música europeia, a 2ª da Rainha da Noite, mas A Flauta Mágica também traz cenas cômicas, um par romântico, alusões à maçonaria, vários tipos de ouvinte encontram aquilo que lhes agrada.
Essa multiplicidade de estilos e histórias em uma só obra me faz até pensar naquelas novelas das nove, antes das oito, que tinham essa ambição de agradar a todo o conjunto da população, neste caso a do Brasil do século XXI e, naquele caso o povo do Império Austro-Húngaro (em Praga a Ópera logo foi um sucesso pouco depois da estreia em Viena, chegando depois à Alemanha). Não é apenas uma comparação superficial: também nas novelas da TV as várias tramas se entrecruzam com relativa independência e não é raro que um casal inicialmente protagonista (como Pamina e Tamino) acabe ganhando menos simpatia do público do que personagens supostamente menores (como Papageno e a Rainha da Noite). Vocês se lembram daquela novela na Índia em que a heroína foi casada à força pela família? Com o carisma do marido – inicialmente um quase-vilão – ganhando o público, o par inicial da heroína – que, no enredo planejado, iria recuperar sua amada do injusto casamento de conveniência – terminou como um coadjuvante secundário.
Temos aqui, então, um tipo de arte que se ajusta aos anseios das massas e, como por um milagre, o grande artista consegue fazê-lo sem rebaixar o nível da música, sem demagogias populistas e usando os lugares-comuns com criatividade. Em todo caso, por mais genial que seja, por esse caráter popular é uma obra que expressa mais uma coletividade do que a interioridade de Wolfgnang Amadeus Mozart: para isso, mais vale ouvir trechos do Requiem ou dos Concertos para Piano. No Concerto nº 20, por exemplo, temos o Mozart misterioso e noturno, nos Concertos nº 25 e 26 o Mozart grandioso, no nº 17 uma alegria mais jovial e no nº 27 uma certa maturidade que evita os excessos. Cada um desses traz, então, algo como retratos da alma do compositor – que era também pianista – enquanto na Flauta Mágica ele escreve mais distanciado, o conceito de personalidade, de individualidade do compositor cabe menos aqui, Mozart torna-se bem maior do que ele próprio e passam por ele os temperamentos dos seus contemporâneos, assim como resquícios musicais dos grandes autores de obras vocais seculares do seu século 18, quase todos italianos (como A. Scarlatti, Vivaldi e vários outros em Veneza) ou tendo vivido na Itália (Händel e Hasse). Por exemplo as melodias de Sarastro soam próximas dos baixos profundos dos italianos (aqui) e poucos seriam momentos semelhantes nas óperas do século XIX, quando os barítonos com voz não tão grave reinariam.
Por esse aspecto que vai além de Mozart tanto em termos de indivíduo quanto de tempo, acho bastante razoável amar essa gravação de Otto Klemperer, maestro que eu dificilmente consideraria uma das primeiras opções para as Sinfonias ou Concertos: nestes últimos, prefiro o Mozart mais leve das gerações mais recentes (Savall, os pianistas Brautigam e Lubimov…) ou nem tão recentes (Brendel/Marriner, Pires/Abbado…) Nessa Flauta Mágica, porém, após a solene abertura – aqui mais solene – Klemperer e Philharmonia Orchestra fazem um acompanhamento sem qualquer exagero ou maneirismo ruim. E os cantores são o que me faz realmente amar, fazem o coração bater mais forte: a Rainha da Noite por Lucia Popp, o Papageno por Walter Berry, o Sarastro por Gottlob Frick alcançam, juntos, um carisma e um nível técnico absurdo e que dificilmente alguma outra gravação alcançaria.
Mozart (1756-1791): A Flauta Mágica (Die Zauberflöte), K. 620
Philharmonia Orchestra, Otto Klemperer (conductor), Wilhelm Pitz (chorus master)
Lucia Popp, Walter Berry, Gottlob Frick, Nicolai Gedda, Gundula Janowitz, Ruth-Margret Pütz, Elisabeth Schwarzkopf, Christa Ludwig, Marga Höffgen
Recording: Kingsway Hall, London 1964 BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – mp3 320kbps
Não sei vocês, mas eu acompanhei com certa distância as eleições nos EUA, assim como os filmes de Hollywood eu não assisto tanto assim e, quando assisto, não é raro o espanto com certos clichês de gosto duvidoso. Mas enxergo uma importante contribuição dos americanos do norte em termos culturais ali no pós 2ª guerra, período em que houve rápida melhoria nas gravações (estéreo a partir dos anos 1950) e surgimento de instrumentos como o sintetizador, a guitarra e o baixo elétrico. Isso tudo seria relevante apenas nos textos sobre técnicas de gravação e construção de instrumentos, se não tivessem surgido junto cenas musicais enormemente interessantes.
Mas ainda no tema das tecnologias à época recentes: era um período e lugar de bonança econômica que permitiram a existência de músicos gravando em dezenas de estúdios e LPs fabricados aos montes, permitindo assim a profissionalização não só de uma meia dúzia de artistas famosos, mas de cenas de jazz com público reduzido porém fiel, com pequenas gravadoras lançando álbuns de variados estilos como o free jazz de Ornette Coleman, Don Cherry e etc., o jazz com percussões latino-americanas e caribenhas, até chegar ao jazz bastante popular de Miles Davis e de Louis Armstrong, que gravavam, ambos, pela Columbia, gravadora de grandes nomes como Lenny Bernstein e Bob Dylan.
Falando em Dylan, ele foi um dos que alcançaram um público bastante amplo com um tipo de persona pública do artista preocupado com questões sociais, com canções de letras longas e sérias, cheias de uma ironia e de uma (falsa ou verdadeira) inteligência que muitos tentariam imitar. Também o Frank Zappa, já no seu primeiro álbum, Freak Out! (1966), tinha um grande foco em letras de crítica social com chutes no saco e cusparadas voltadas para as famílias norte-americanas defensoras dos bons costumes e do “american dream”.
O pianista e band leader Sun Ra, na sua extensa discografia (e a prolixidade de registros em estúdio e ao vivo é uma característica em comum com Zappa), além de dar entrevistas enigmáticas sobre o sonho americano e o racismo, também teve álbuns com música cantada, com letras de crítica social, por exemplo aqui. Neste “The Heliocentric Worlds of Sun Ra vol II” (1966), não temos a cantora June Tyson, que entraria na Arkestra de Sun Ra poucos anos depois. Também não temos aqui uma banda gigante cheia de sopros: apenas cinco músicos entre saxofones, trompete, clarinete baixo e flauta, o que é pouco em comparação com discos dos anos 1970 e 80 em que a Arkestra era uma big band maior. Aqui, então, temos um total de oito músicos incluindo Sun Ra (piano e clavioline, um tipo de sintetizador). Ele tira do instrumento eletrônico sons muito mais grotescos e imprevisíveis do que os sons elegantes do piano elétrico Fender Rhodes, que aliás tanto Ra quanto Zappa usariam na década seguinte. Aqui, curiosamente, os sons eletrônicos de Sun Ra lembram um pouco a sonoridade do saxofone, mais do que a de um piano. O outro destaque maior de “Heliocentric Worlds Vol. II” é o contrabaixista Ronnie Boykins (1935 – 1980) que, como também os saxofonistas, estava próximo do que havia de mais atonal nas sonoridades do jazz dos anos 60.
Sun Ra usou teclados elétricos anos antes de quase todo mundo, sendo um dos pioneiros desses instrumentos no jazz junto com Joe Zawinul e poucos outros, uns cinco a dez anos antes de se falar em jazz fusion. Sun Ra se comportava à parte dessas classificações e terminologias, misturando big band com free jazz, roupas coloridas com solos atonais, liderando improvisos instrumentais mas também dando entrevistas com declarações sérias como as de Dylan e Zappa… Ou seja, era brabo na música e brabo no gogó, com as roupas esquisitas dando-lhe um certo passaporte para falar coisas sérias, afinal, como disse seu contemporâneo Thelonious Monk, às vezes é até bom que as pessoas te considerem louco (“Sometimes it’s to your advantage for people to think you’re crazy”).
Sem aderirem totalmente às modas de cada momento, porque ambos era esquisitos demais para aderir a qualquer moda, Frank Zappa e Sun Ra as tangenciaram às vezes. Aqui, nesses dois discos de 1966, enquanto Zappa faz colagens e distorções de sons – aliás, algo que ele aprendeu ouvindo discos de Edgar Varèse nos anos 1950 (aqui ele fala a respeito).
Mais um detalhe: esta postagem traz o som ripado do LP original de Zappa, no qual a contracapa trazia textos excêntricos e enigmáticos do próprio Zappa. Também o disco de Sun Ra trazia na contracapa trazia um poema do líder da Arkestra. Mais uma semelhança entre esses dois discos de 1966.
The Heliocentric Worlds of Sun Ra, Vol. Two (1966)
1. The Sun Myth (17:20)
2. A House Of Beauty (5:10)
3. Cosmic Chaos (14:15)
Sun Ra – piano, tuned bongos, clavioline, compositions and arrangements
Marshall Allen – alto saxophone, piccolo, flute, percussion
Pat Patrick – baritone saxophone, percussion
Walter Miller – trumpet
John Gilmore – tenor saxophone, percussion
Robert Cummings – bass clarinet, percussion
Ronnie Boykins – bass
Roger Blank – percussion
The Mothers of Invention – Freak Out! [single vinyl rip] (1966)
A1 Hungry freaks, daddy
A2 I ain’t got no heart
A3 Who are the Brain Police?
A4 Motherly love
A5 Wowie Zowie
A6 You didn’t try to call me
A7 I’m not satisfied
A8 You’re probably wondering why I’m here
B1 Trouble comin’ every day
B2 Help, I’m a rock / It can’t happen here
B3 The Return of the son of monster magnet (Unfinished Ballet in Two Tableaux)
all selections arranged, orchestrated and conducted by Frank Zappa
100 anos da morte de Gabriel Fauré A partir do olhar um tanto blasé da foto acima, mostrando Gabriel Fauré quando ainda tinha os bigodes e cabelos escuros, podemos extrair a característica fundamental da música desse compositor: um certo desprezo ou apatia com relação aos exageros do romantismo tardio da sua época – tanto nos excessos afirmativos como nos momentos caricaturalmente tristes. Esses exageros aparecem principalmente da música orquestral, em um período em que os tamanhos das orquestras aumentam e os instrumentos são refeitos para fazerem cada vez mais barulho: estamos falando das grandiosas óperas de Wagner, sinfonias de Bruckner, concertos de Tchaikovsky… e um dos primeiros representantes desses excessos românticos foi o francês Berlioz.
O estadunidense Robert Wilks define Fauré como o anti-Mahler, mas também seria possível defini-lo como anti-Berlioz, já que tanto Mahler como Berlioz praticamente só escreveram música para grandes formações orquestrais, algumas com coro, enquanto Fauré se destacou principalmente na música de câmara: quartetos, quintetos, obras para voz e piano ou para piano solo.
Mesmo a sua Missa de Requiem, como vimos nas postagens dias atrás, tinha uma orquestração relativamente moderada: segundo seu biógrafo Robert Orledge, “He intended his Requiem to be intimate, peaceful and loving, with none of the horrors of death he so detested in Berlioz’s 1834 Requiem”.
Para além do número de instrumentistas, vejamos a argumentação de Wilks:
Fauré’s personality was described as charming, easy-going and sentimental, with a keen sense of humor. He was adept at making and maintaining friendships with both musicians and rich patrons. He was sometimes accused of being a social butterfly. He was modest, even-tempered, “a real gentleman”.
Mahler’s personality could not have been more different. Musicians considered him abrasive and demanding. He consistently clashed with or offended almost everyone he ever worked with. Of course, the source of some of those frictions was anti-semitism and no fault of his own. Throughout his life he felt like an outsider. Neuroses displayed themselves in dances that were “demonic” and marches that were “ghostly”. Cheerful music is tainted with anxiety and tragic passages are interrupted with euphoria. He had conversations with Dr. Freud in an attempt to understand his own motivations. Unlike Fauré, he (…) was a highly acclaimed opera conductor in seven different cities.
Both composers wrote songs. Fauré’s more substantial output was produced over the course of his whole life, earning a revered place in the repertory of French art song. The two composers had important but different relationships to literary texts. Fauré had an extreme sensitivity to poetry and strong opinions about how a poem should be set in terms of its general feeling and mood (not always in sync with the natural rhythm and phrasing). He is most associated with the poems of Verlaine. (daqui)
Com exceção do Requiem, então, suas outras obras-primas são peças da intimidade, da conversa ao pé do ouvido, como é o caso dos diálogos entre voz e piano neste disco bem recente da Harmonia Mundi. E além do barítono francês Stéphane Degout (nasc. 1975), temos nessa postagem a holandesa Elly Ameling (nasc. 1933), soprano de imenso repertório gravado desde décadas de 1950, e que neste disco canta um repertório francês (Fauré, Duparc, Debussy e Ravel) em gravações ao vivo dos anos 1980. O ciclo “La bonne chanson”, de Fauré, aparece aqui na versão para voz, piano e quarteto de cordas. O ciclo de canções de Ravel cantado por Ameling no mesmo CD tem uma formação quase igual: ao quarteto de cordas e ao piano, somam-se flauta e clarinete. Mas a linguagem de Ravel é mais atonal e usa os instrumentos de modos mais vanguardistas, lembrando, aliás, o seu Trio da mesma época.
Mais um detalhe: Claude Debussy, 18 anos mais jovem e com um espírito um tanto briguento, escreveu ou falou certos comentários maldosos sobre Fauré. Não consta que eles fossem amigos do peito. É verdade, porém, que as semelhanças entre os dois são muitas: se Debussy, como Ravel, buscavam certas inovações formais que, na comparação, podiam deixar o compositor mais velho parecendo um conservador, ouvindo os dois à distância a sofisticação dos acompanhamentos da voz pelo piano os aproxima, assim como outros detalhes abundantes. Por exemplo: os dois, ao transformar os versos em música, evitavam refrões ou repetições de qualquer tipo, repetições comuns nos lieder de Schubert e Schumann. Isso fica óbvio na ópera Pelléas et Mélisande de Debussy (aqui), com mais de duas horas sem nenhuma ária com refrão, mas também é um dos ingredientes que dão às canções de Fauré todo o seu suave sentimento e intenso mistério.
A música de Fauré nunca passou muito tempo sumida aqui do blog, mas uma característica marcante é a sua tendência a aparecer em conjunto com outros compositores, na maioria das vezes franceses mas às vezes de outros cantos. Contrariando uma certa ideia do gênio solitário e incompreendido, Fauré aparece em programas de recitais, em CDs e LPs junto de boas companhias como Debussy, Ravel e outros mais jovens como Poulenc e Messiaen. Aliás, Ravel foi o seu mais famoso aluno, mas há muitos outros que ficaram famosos, como as irmãs Nadia e Lili Boulanger (recentemente repostei o Réquiem de Fauré regido por Nadia). Aqui, aqui e aqui temos a música para piano solo e a quatro mãos de Fauré junto com a de seus contemporâneos. Aqui, obras para violino e piano, aqui, para flauta e piano… e se vocês clicarem mesmo nos links, notarão que o René é o meu colega que mais frequentemente tem nos trazido essas pequenas porções – petiscos, entradas e sobremesas – inventadas por Fauré.
Também o quarteto de cordas de Fauré marcou presença (aqui) em gravação premiada – Recording of the Year da Gramophone – ao lado novamente de Debussy e Ravel, lembrando que cada um desses compôs apenas uma obra para essa formação.
Portanto, nosso Gabriel ocupa esse lugar ao mesmo tempo importante e afastado dos holofotes, talvez um tímido como definiu PQPBach: música que “não grita chamando você, não chama sua atenção, tem que ser convidada” (aqui).
E há algo de bom a ser dito sobre os introvertidos inteligentes que nos conquistam ora pela inteligência, ora pelo sarcasmo (como Machado de Assis que, dizem, era um tanto gago), ora pelo exotismo dos esquisitos autênticos, ora pelo perfeccionismo dos que se preparam mil vezes antes de subir ao palco. É claro, na música de concerto nós amamos os maestros como Bernstein, os pianistas como Horowitz e Argerich, com personalidades fortes que se impõem e costumam ser lembradas nas listas de melhores isto ou aquilo. Mas o mundo seria bem menos rico sem os introvertidos como Fauré, ou como Chopin, que detestava fazer turnês e parou de compor para orquestra com pouco mais de 20 anos.
O compositor Aaron Copland (1900-1990) descreveu o movimento lento do Quarteto com Piano nº 2 de Fauré como “clássico se definirmos classicismo como intensidade sobre um fundo calmo.” Como diz um biógrafo, Fauré tinha “um horror de retórica, sentimentalismo, superficialidade”. Em bom português: não era do tipo que gosta de se amostrar. Não sei afirmar se Fauré tinha de fato desgosto pela orquestra em geral, mas o fato incontestável é que seu talento mais profundo era para a música mais íntima, o diálogo entre, dois ou três instrumentos, até cinco no máximo. Hoje, em homenagem a esse gênio discreto, trago aqui discos de música de câmara que vão contra esse padrão de juntá-lo a amigos e colegas, sendo todos eles dedicados exclusivamente à música de Fauré.
Gabriel Fauré por Angela Hewitt: Tema e Variações op. 73, Duas Valsas-Caprichos, Três Noturnos, Balada op. 19 para piano
. Gabriel Fauré por Brantelid & Forsberg – Obras completas para violoncelo e piano: Sonatas nº 1 e 2, Romance, Papillon, Sérénade, Berceuse, Sicilienne, Morceau de lecture, Élegie
É melhor admitir logo ao invés de tapar o sol com a peneira: o Réquiem de Fauré ocupa um espaço acima do resto da sua obra orquestral. Isso aparece aqui: apesar das muito competentes interpretações dos músicos da orquestra suíça com o maestro também suíço Armin Jordan (1932-2006), o Réquiem paira no alto, elevado a uma distância das outras peças mais comuns, nas quais às vezes as repetições de Fauré podem cansar.
O Réquiem de Fauré, assim como as Sinfonias de Bruckner, teve mais de uma versão assinada pelo compositor. A primeira versão, sem violinos e sem madeiras, tinha como destaques, além das vozes do coro, as cordas graves. Não sem precedentes: já em J.S. Bach a ausência de violinos era um procedimento usado em certas obras de temas ligados à morte, com nas Cantatas BWV 106 (apelidada “Actus Tragicus”), BWV 18 e em vários movimentos de outras obras. Também no Barroco francês a viola da gamba tinha um papel proeminente em obras de Marais, Rameau, entre outros. O editor das obras de Fauré, em Paris, porém, não gostou: sugeriu a publicação de uma outra versão para orquestra sinfônica completa, sugestão acatada pelo compositor. Essa versão final, estreada em 1894, foi publicada com todas as partes para orquestra apenas em 1901, treze anos depois da primeira audição da obra em 1888 na igreja La Madeleine, em Paris.
O Réquiem alcançou grande popularidade ainda durante a (longa) vida do compositor e há registros de que Fauré, ao ser perguntado a respeito, disse que queria fugir do convencional e expressar a morte como “uma aspiração à felicidade do além, mais do que uma passagem dolorosa”. A versão gravada aqui é a final, com um naipe de cordas completo com os violinos.
Gabriel Fauré (1845-1924):
1. Ballade, pour piano & orchestre, op. 19
2 – 5. Pelléas et Mélisande, op. 80
6. Pavane, op. 50
7 – 13. Requiem, op. 48
Gilles Cachemaille, barítono / Mathias Usbcek, soprano
Orchestre de la Suisse Romande (Requiem) / Orchestre de Chambre de Lausanne (1-6) / Jean Hubeau, piano (1)
Armin Jordan, maestro
Em 2018, muito se falou do centenário da morte do genial, inovador e sempre moderno Debussy. Pouco se falou, contudo, de Lili Boulanger, que morreu dez dias antes de Debussy.
Lili Boulanger teve uma carreira meteórica:
– aos seis anos de idade, antes de saber ler, já decifrava partituras. Gabriel Fauré se impressionou com seu ouvido absoluto e lhe deu as primeiras aulas de piano
– em 1913 foi a 1ª mulher a ganhar o cobiçado Prix de Rome, vencido por nomes como Berlioz, Debussy e Dutilleux, e que dava ao vencedor uma temporada de estudos em Roma. Note-se a concepção, desde o Renascimento, de que um grande artista devia conhecer a Itália e a capital do antigo Império. Lili passou pouco tempo em Roma, por causa de sua saúde delicada e da 1ª guerra mundial
– de 1914 a 1917, compôs sua obra-prima para solistas, coro, orquestra e órgão, baseada no Salmo 130, De Profundis (Du fond de l’abîme – Do fundo do abismo)
No começo de Do fundo do Abismo, é com sons agudos – e não com sonoridades graves e pesadas – que a orquestra introduz a oração desesperada que em seguida as vozes vão cantar (…). O sentimento da solidão humana frente a uma onipotência, é esta a fonte de inspiração de Lili Boulanger, nos Salmos assim como no Pie Jesu, de uma linha melódica pura e com poucos ornamentos.
(Artigo de Joseph Baruzi no Ménestrel, 1923)
Nadia Boulanger, irmã de Lili, também compôs quando jovem e depois parou: dizia que suas obras não eram ruins, mas eram inúteis. Entre as décadas de 1910 e 1970, dedicou-se a ensinar, a reger e a divulgar a música de sua irmã pelo mundo. Nadia foi amiga de Stravinsky e professora de boa parte dos grandes compositores do século XX, de Piazzolla a Philip Glass. No Brasil, Almeida Prado e Egberto Gismonti, entre outros, foram a Paris estudar com ela.
Este disco foi gravado ao vivo em 1968, em um concerto em homenagem aos 50 anos de morte de Lili. Nadia regeu também o Requiem de Gabriel Fauré, que ela estreou na Inglaterra em 1936, quando foi a primeira mulher a reger a Royal Philharmonic de Londres. Também foi a primeira à frente da Filarmônica de Nova York, das Sinfônicas de Boston e da Filadélfia. Na sua estreia em Boston, em 1938, quando um repórter perguntou como ela se sentia ao ser a primeira mulher a reger a Boston Symphony, ela deu uma resposta ácida:
“Já faz um pouco mais de 50 ans que sou mulher, já superei o meu espanto inicial.”
Em décadas mais recentes esse Requiem de Fauré tem tido muito mais gravações na Inglaterra do que em qualquer outro lugar: London Symphony Orchestra & Tenebrae, Philharmonia Orchestra & Ambrosian Singers, Bournemouth Sinfonietta & Winchester Cathedral Choir, Choir of St John’s College & Academy of St Martin in the Fields, New Philharmonia Orchestra & Choir of King’s College, Cambridge… Mas Mademoiselle Nadia Boulanger foi a pioneira. Ouçam.
Lili Boulanger (1893-1918)
01. Psalm 24 ‘La terre appartient à l’Éternel’
02. Pie Jesu
03. Psalm 130 ‘Du fond de l’Abîme’
Gabriel Fauré (1845-1924)
Requiem, Op. 48
04. Introit et Kyrie
05. Offertoire
06. Sanctus
07. Pie Jesu
08. Agnis Dei
09. Libera me
10. In paradisum
Janet Price, soprano
Bernadette Greevy, contralto
Ian Partridge, tenor
John Carol Case, baritone
Simon Preston, organ
BBC Chorus, BBC Symphony Orchestra
Nadia Boulanger
Live at Fairfields Hall, London, England, 1968
Arthur Moreira Lima Jr. (Rio de Janeiro, 16 de julho de 1940 – Florianópolis, 30 de outubro de 2024) por suas próprias palavras:
I. Em entrevista na edição de 14/10/1974 do jornal carioca O Pasquim:
“Acho jogadores assim como o Gérson, Didi, maravilhosos. Como certos pianistas. Didi pra mim é o Gulda. Ele podia errar tudo, mas de repente tinha aquele momento de gênio que neguinho pode estudar a vida inteira que não vai conseguir fazer igual.”
O PASQUIM – Tem algum grande pianista hoje como Didi?
ARTHUR – Sei lá, os grandes pianistas atuais tendem mais para Pelé do que pra Didi. São perfeitos demais. Tem o Rubinstein, né? Esse ainda faz uns troços que dão aquela ereção, entende?”
(…)
O PASQUIM – Qual é o autor brasileiro que você executa com mais receptividade lá fora?
ARTHUR – Bem, eu só tenho tocado Villa-Lobos. Que, aliás, tem uma receptividade muito maior lá fora do que no Brasil. Ele é considerado o maior compositor das Américas. E com toda razão. Tem neguinho aí que perto dele não pega nem juvenil. Eu gosto muito do Ernesto Nazareth também. Mas é um compositor muito mais difícil de ser entendido no estrangeiro. Aliás, eu vou gravar um disco em Moscou só com músicas brasileiras e é claro que vou incluir Nazareth.”
(Obs: após a publicação da entrevista, em 1975 Arthur foi convidado a gravar um vinil duplo dedicado somente a Nazareth, no Brasil mesmo, seguido de outro, totalizando quatro LPs que estão entre seus legados mais preciosos e você pode encontrá-los aqui)
II. Em 1981, quando lançou os Noturnos em gravação feita na Califórnia/USA e escreveu o texto do encarte do disco, traduzido para o inglês e re-traduzido aqui:
“A palavra nocturne foi utilizada pelo pianista e compositor irlandês John Field (1782-1832) para designar um tipo de composição lenta (calma e sonhadora), que tinha como principal característica a imitação do bel canto. Chopin gostava de tocar os noturnos de Field, adicionando floreios improvisados no estilo de sua época.
A declamação pianística (principal característica dos noturnos) é a chave do estilo de Chopin e da sua filosofia artística. Não é surpreendente, então, que Chopin tivesse uma especial predileção pelos seus noturnos. Ele os tocava frequentemente para os seus alunos e amigos, em salões e em concertos públicos. Em termos de pedagogia, o Mestre atribuía a eles uma importância comparável à dos Estudos.
Os noturnos exemplificam notavelmente a ousadia musical de Chopin e seus revolucionários modos de abordar o instrumento. Ouvindo eles todos, podemos apreciar o caminho artístico atravessado por Chopin – com cerca de 17 anos, as primeiras tentativas no gênero (Noturnos Póstumos nº 19, 20 e 21); com 36, a transcendência, a perfeição da forma musical, alargada no seu conteúdo emocional, rica em invenção harmônica e de contrapondo, como evidenciado na obra mais tardia (nº 18).”
III. Em 1988 No encarte de sua coleção de 3 LP dedicados a Villa-Lobos, um deles você pode ouvir no link mais abaixo:
“Impregnadas de sentimento brasileiro, as peças não fogem à linha geral de sua obra, filosoficamente assentada no nacionalismo, baseada em ritmos e melodias do nosso riquíssimo folclore e realizada tecnicamente sob a influência de compositores europeus como Stravinsky, Bartók e Debussy, influência essa que apenas orientou seu talento genial, sem impedir que em momento algum deixassem de vir à tona seu autodidatismo e sua marcante personalidade.
Fiel às suas raízes populares, o piano do Villa-Lobos é brilhante, marcando os ritmos por vezes como se fosse um instrumento de percussão, indo do mais terno ao mais agressivo, sem nunca perder uma grande presença de som, que lhe é característica.”
IV. O pianista, que tocou muitas vezes tanto em Moscou como em Kiev, lamentou em 2022:
“Tanto os russos como os ucranianos são muito simpáticos. Fico muito triste com esse conflito. Não estou do lado de nenhum governante. Minha preocupação é com o povo, a população. A Polônia está recebendo os refugiados ucranianos e nesses grupos há músicos. Nossa missão é lutar pela paz.” (aqui)
Frédéric Chopin (1810 – 1849):
21 Noturnos
Arthur Moreira Lima, Blüthner Piano
Recorded in Little Bridges Auditorium, Pomona College, CA, USA, 1981 BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE – mp3 320 kbps
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Heitor Villa-Lobos (1887 – 1959) – Cirandas:
A Condessa
Senhora Dona Sancha
O Cravo brigou com a Rosa
Pobre Cega (Toada da Rede)
Passa, Passa, Gavião
Xô, Xô Passarinho
Vamos Atras da Serra, Calunga
Xô, Xô Passarinho
Vamos Atrás da Serra, Calunga
Fui no Tororó
O Pintor de Cannahy
Nesta Rua, Nesta Rua
Olha o Passarinho, Dominé
À Procura de uma Agulha
A Canoa Virou
Que Lindos Olhos!
Có, Có, Có
Arthur Moreira Lima, Steinway Piano
Recorded: Rio de Janeiro, 1988
Obs: Villa-Lobos, só no streaming. Reclamações, enviem por favor aos herdeiros do compositor.
(A foto que abre esta postagem é do Instituto Piano Brasileiro, também responsável por compartilhar várias outras preciosidades de Arthur Moreira Lima no Youtube (aqui) e, aqui, o mapa com todas as cidades onde ele tocou no seu projeto “Um Piano na Estrada”)
Pleyel
As postagens neste blog são bastante variadas e não costumam seguir ordens: vocês sabem que é comum ver aqui, depois de uma maratona de concertos barrocos, uma ópera romântica e depois um clássico do jazz… Mas às vezes algumas combinações de álbuns podem soar especialmente felizes e achei importante juntar a música para piano de Komitas (1869-1935) com a do outro compositor de origem armênia que que fez música bastante original, afastada das correntes e modas do século XX. Ouvir Komitas e depois ouvir Hovhaness, especialmente a música para piano do mesmo, nos permite certas constatações do tipo “então é daqui que ele tirou isso!”
Nascido Alan Vaness Chakmakjian, ele usou como nome artístico uma adaptação do seu nome do meio (mais uma semelhança com Komitas, que foi o nome recebido em um tipo de ordenamento religioso, e não de batismo). Fortemente interessado na música da Armênia e da Índia, Hovhaness teve o reconhecimento de instituições e pessoas como o maestro Leopold Stokowski, o compositor John Cage e o pianista Keith Jarret, que gravou o concerto de sonoridade bastante oriental quando o compositor ainda era vivo (aqui).
Nascido perto de Boston, Hovhaness estudou em Tanglewood mas, nas suas próprias palavras, tomou rumos completamente diferentes dos que seus professores aprovariam. Apesar disso, conseguiu alguns sucessos em Nova York a partir dos anos 1940 e, já acom mais de 40 anos, fez viagens para a Índia e o Japão para complementar seu interesse pelas diferentes tradições musicais asiáticas.
temido crítico Virgil Thomson escreveu no New York Herald Tribune em 1947: “A pureza de sua inspiração fica evidente na extrema beleza do material melódico, que é original e não coletado em fontes populares do folclore.” Já o compositor Lou Harrison descreveu assim um outro concerto: “The serialists were all there. And so were the Americanists, both Aaron Copland’s group and Virgil [Thomson]’s. And here was something that had come out of Boston that none of us had ever heard of and was completely different from either. There was nearly a riot in the foyer [during intermission] — everybody shouting. A real whoop-dee-doo.”
Apesar desses sucessos, sua tendência à esquisitice deve ter impedido um sucesso mais amplo como o de seus contemporâneos Copland e Bernstein. Hovhaness passou boa parte da maturidade em Seattle, cidade distante das grandes orquestras e salas dos EUA, onde ele dava aula e compunha centenas de obras para piano, 67 sinfonias (sim, você não leu errado). A grande prolixidade – característica que une Hovhaness a Milhaud e Villa-Lobos – faz com que até hoje certas obras estejam recebendo primeiras ou segundas gravações em selos pequenos, procurados por fãs seletos mas fiéis. Compostas entre as décadas de 1930 e 1980, em sua maioria elas demandas poucos truques de virtuosismo, com as dificuldades se concentrando mais nas relações entre melodias (normalmente na mão direita) e seções com notas decorativas abusando dos ornamentos, ritmos repetitivos, sons modais e, mais raramente, técnicas expandidas em que se atacam diretamente as cordas do piano
Alan Hovhaness (1911-2000):
Música para piano, por Alan Hovhaness
1. Ghazal No.1, Op.36 No.1
2. Komachi, Op.240
3. Shalimar, Op.177
4. Sonata Prospect Hill, Op.346
5. To Hiroshige’s Cat (1st Mov.), Op.366
6. Love Song Vanishing Into Sounds Of Crickets Op.327
Alan Hovhaness, Yamaha C7 Grand Piano
1. Mystic Flute op. 22 2.00
2. Pastoral n° 1, op. 111 n° 2 5.28
3-5. Suite op. 96
I. Doloroso 2.00 / II. Invocation Jhala 4.08 / III. Mysterious Temple 3.10
6. Dance Ghazal op. 37a 1.56
7. Achtamar op 64 3.51
8. Two Ghazals op. 36 7.01
9-12. Sonata for piano “Cougar Mountain” op. 390
I. 2.53 / II. 3.19 / III. 2.30 / IV. 4.05
13. Consolation op. 419 2.09
14-16. Suite On Greek Tunes
I. Wedding Song 1.29 / II. Grape-yard Song 0.54 / III. Dance in seven Tala 2.14
17. Love Song Vanishing Into Sounds of Crickets op. 327 3.53
18. Slumber Song op 52 2.22
19-20. Macedonian Mountain Dance op. 144 & 144b
Dance n°1 3.01 / Dance n° 2 2.56
21. Dark River and Distant Bell op. 21 4.47
22. Jhala op. 103 5.57
23-25. Three Haikus op. 113
Haiku I 1.14 / Haiku II 1.20 / Haiku III 4.14
François Mardirossian, piano
Recorded: Villethierry, France, 2021
I’m always looking for new elements of sounds, and then there are so many possibilities with what we already have. What I am looking for is a deeper truth, a further penetration into what I have already done. And into what I feel is needed in music. A deeper, more emotional understanding of the universe, a greater oneness with the universe. However, I am certainly always open to new sounds if they are beautiful, but not to the noise of traffic jams – we have had enough of that. (Alan Hovhaness, entrevista em 1971)
Um disco duplo que junta com grande sucesso a música composta no começo do século XX por dois homens cuja vida individual iria se misturar com a carnificina da 1ª Guerra Mundial. As dezenas de páginas do livreto do álbum – lançado em 2024 – trazem um forte resumo do genocídio armênio de 1915, da guerra e fazem uma triste comparação com as igualmente estúpidas carnificinas do nosso tempo, pouco notado à época por se situar ao mesmo tempo da carnificina mais ampla que ocorria principalmente na Europa Ocidental. Mas antes dessas importantes informações biográficas e históricas eu gostaria de deixar a minha opinião sobre este álbum: o jovem Kirill Gerstein (piano), acompanhado de Ruzan Mantashyan (soprano) e mais alguns colegas, escolheram muito bem o programa de obras: não só por misturar Komitas com o mais célebre Debussy, mas também por juntar peças para piano solo, dois pianos, piano e voz. Assim, por exemplo, a transição entre “Chansons de Bilitis” e “Six Épigraphes antiques” faz todo o sentido: em ambas as peças, Debussy tem em mente um mundo imaginário com elementos da antiguidade clássica (sátiros, ninfas, deuses gregos e egípcios…), típicos da obra desse compositor que buscou sempre o exótico, o detalhe do outro que causa estranhamento e nos faz sair da mesmice dos sons, grosso modo, “ocidentais”, seja lá o significado deste último coletivo imaginário. É claro que o exotismo da música de Komitas se encaixa bem nisso tudo. Ou seja: o disco duplo, além de muito prazeroso de se ouvir, foge do padrão atual de se juntar as peças musicais como em uma prateleira de supermercado – aqui a música para dois pianos, lá no outro corredor as obras para piano e voz, e lá no cantinho mal iluminado os “orientais”…
Komitas estudou música em Berlim a partir de 1895 e, antes, em Etchmiadzin – cidade que abriga uma catedral construída no ano 483, o centro religioso da Igreja da Armênia, que por sua vez é uma instituição separada dos dois cristianismos que sucederam ao império romano (o de Roma e o de Constantinopla). Com essa base cultural fundada em uma das mais antigas tradições do cristianismo, e também informado sobre a tradição germânica, Komitas coletou e transcreveu mais de 3 mil peças de música tradicional da Armênia, se interessando também pela música dos Curdos, grupo étnico até hoje imprensado entre a Turquia, o Irã e o Iraque e frequentemente pisoteado pelas maiorias daqueles países. A partir de 1906, Komitas fez turnês pela Europa: Rússia, Itália, Áustria, Suíça, Alemanha e sobretudo foi muito apreciado em Paris, onde alguns colegas armênios já viviam e ajudaram a fazer seu nome. Claude Debussy, entre outros, elogiaram a sua música. Mas com a 1ª Guerra Mundial, a grande catástrofe aconteceu, mas vou parar esse meu resumo por aqui… O texto a seguir junta trechos do livreto, de modo a apresentar esse exótico Komitas Vardapet, mais conhecido pelo primeiro nome, e que para mim não era nem um pouco conhecido.
Artur Avanesov escreveu no livreto: Like Bartók, Komitas was an ethnomusicologist with a passion for the music of his own people. Like Bartók, he understood that to fully comprehend his own tradition, he also had to comprehend the traditions of other nations, and their research often led them in the same direction. Komitas’s music is particularly close to Bartók’s folklore-based miniatures, such as Hungarian Folksongs from Csík, Romanian Christmas Carols, dances from Mikrokosmos, and his music for children. Both composers often build the vertical harmony out of multimodal layers. However, unlike Komitas, Bartók, a true virtuoso, created Hungarian music under the influence of Liszt and left behind a vast number of large-form compositions. In spite of the evidence that Komitas fully mastered the art of instrumentation, none of his mature works features any instrument other than the piano.
As an ethnographer, Komitas had a choice: either to assume the position of an observer describing and archiving the state of traditional music at that moment or, armed with his knowledge and expertise, to re-create the eessence of national music as he perceived it, basing it on his own research, even when this essence was quickly disappearing. He clearly took the second path. There are multiple indications that, even in his time, actual folkloric practice may have been somewhat different than the samples he recorded would lead us to believe. Not an archivist, but a creator by nature, Komitas approached the study and preservation of folklore critically, rejecting everything that would not fit in with his vision of Armenian music, and perhaps sometimes editing on the basis of historical practice to make the reality correspond with logic. The result of Komitas’s efforts is that Armenian folklore as we know it today is largely Komitas’s folklore, the face of the national music that he restored from a half-erased original. It was to this gigantic task that he, indeed, had to sacrifice himself – to silence his own song in order to save the art of an entire nation from a fatal disease leading to oblivion and non-existence.
[depois do genocídio armênio 1915, do qual ele, que estava em Constantinopla/Istanbul, escapou com vida, mas com marcas da tortura e da morte de inúmeros conhecidos…] At first, he tried to work, but going back to his daily routine proved impossible. Besides, he was constantly haunted by paranoid hallucinations and nightmares. In 1916, while conducting his last Easter mass, he started sobbing at the altar as the hymn “Lord, Open the Doors” sounded. He screamed and prayed all night long. His landlord threatened to evict him or non-payment of rent. The same year, he finalized his last edition of the Piano Dances, after which working became unbearable..
CD 1
CLAUDE DEBUSSY (1862–1918)
12 Études (1915) – à la mémoire de Frédéric Chopin
PREMIER LIVRE
1 I. Pour les cinq doigts · d’après Monsieur Czerny
2 II. Pour les tierces
3 III. Pour les quartes
4 IV. Pour les sixtes
5 V. Pour les octaves
6 VI. Pour les huit doigts
DEUXIÈME LIVRE
7 VII. Pour les degrés chromatiques
8 VIII. Pour les agréments
9 IX. Pour les notes répétées
10 X. Pour les sonorités opposées
11 XI. Pour les arpèges composés
12 XII. Pour les accords
KOMITAS VARDAPET (1869–1935)
Armenian Dances (1916)
13 Manushaki of Vagharshapat
14 Yerangi of Yerevan
15 Unabi of Shushi
16 Marali of Shushi
17 Shushiki of Vagharshapat
18 Het u Aradj of Karin
19 Shoror of Karin
Kirill Gerstein, piano
CD 2
CLAUDE DEBUSSY
Chansons de Bilitis (1897-98)
Text: Pierre Louÿs
1 I. La Flûte de Pan
2 II. La Chevelure
3 III. Le Tombeau des naïades
Ruzan Mantashyan, soprano
Kirill Gerstein, piano
6 Épigraphes antiques
pour piano à quatre mains (1914–15)
4 I. Pour invoquer Pan, dieu du vent d’été
5 II. Pour un tombeau sans nom
6 III. Pour que la nuit soit propice
7 IV. Pour la danseuse aux crotales
8 V. Pour l’Égyptienne
9 VI. Pour remercier la pluie au matin
Katia Skanavi and Kirill Gerstein, piano
KOMITAS VARDAPET
Armenian Songs
Text: traditional
10 Tsirani tsar
11 Chinar es
12 Garoun a
13 Le le Yaman
14 Qeler Tsoler
15 Antouni
Ruzan Mantashyan, soprano
Kirill Gerstein, piano
CLAUDE DEBUSSY
Late Pieces
16 Noël des enfants qui n’ont plus de maisons (1915)
Text: Claude Debussy
Ruzan Mantashyan, soprano
Kirill Gerstein, piano
17 Page d’album pour piano pour l’œuvre du « Vêtement du blessé » (1915)
18 Berceuse héroïque – pour rendre hommage à S.M. le roi Albert Ier de Belgique et à ses soldats (1914)
19 Étude retrouvée (1915)
20 Élégie (1915) from Pages inédites – sur la Femme et la Guerre
21 Les Soirs illuminés par l’ardeur du charbon (1917)
Kirill Gerstein, piano
En blanc et noir pour deux pianos (1915)
22 I. À mon ami A. Koussevitzky (Avec emportement)
23 II. Au lieutenant Jacques Charlot tué à l’ennemi en 1915, le 3 mars (Lent. Sombre)
24 III. À mon ami Igor Stravinsky (Scherzando)
Thomas Adès and Kirill Gerstein, piano
Centro e noventa anos atrás, no dia 8 de setembro de 1831, os russos capturaram Varsóvia após a rebelião ocorrida na Polônia em meio a outras balbúrdias que sacudiram a Europa desde 1830. Chopin, ligado ao grupo que defendia a independência polonesa, jamais voltaria à sua terra natal. Ele estava em uma curta viagem pela Alemanha e, poucos dias depois, ainda em setembro, chegaria a Paris. “Coloco minha tristeza no piano”, escreveu ele em seu diário. Nesses primeiros meses de exílio ele escreveu seu primeiro Scherzo. A palavra italiana, que significa brincadeira, tem aqui um sentido enigmático, talvez de humor doentio e sarcástico, porque são as composições de Chopin mais ligadas ao que Nietzsche nomeia como estado de alma trágico. O Scherzo nº 1, em si menor, começa com acordes pesados, passa por um breve momento de paz com uma citação da canção natalina polonesa “Lulajże Jezuniu” (Dorme Jesus), canção brutalmente interrompida pelos acordes trágicos. Hoje trago dois pianistas da época do vinil, que considero até hoje os maiores intérpretes desse Scherzo. A gravação dos quatro Scherzi por Richer era uma grande referência do Penguin Guide e outras enciclopédias musicais que deixaram de existir com a internet. Richter era um pianista de múltiplos talentos, mas provavelmente sua maior vocação era para a música mais “séria”, com uma certa solenidade, não era um homem de piadas e brincadeiras (para voltarmos à palavra italiana scherzo). Por isso ele é considerado um grande intérprete das últimas sonatas de Beethoven e de Schubert, bem como do Cravo Bem Temperado de Bach. A exceção que confirma a regra é o Concerto de Gerswhin, que surpreendeu o conselho consultivo do PQPBach por seu swing e leveza. Os Scherzi, gravados em 1977, recebem nessa edição em CD uma boa companhia com a série de miniaturas de Schumann. Aliás, Schumann era um grande admirador de Chopin e escreveu, sobre o primeiro scherzo: “Como se vestirão suas obras graves, se a piada já está sob véus negros?”
F. Chopin (1810-1849):
1. Scherzo No. 1 In B Minor, Op.20
2. Scherzo No. 3 in B-flat Minor, Op.31
3. Scherzo No. 3 in C-Sharp Minor, Op.39
4. Scherzo No. 4, E major, Op.54
Depois da referência, a obscura gravação ao vivo. Michelangeli se notabilizou pela sua interpretação de um pequeno número de obras de Chopin: a Balada nº 1, a Sonata nº 2 “Marcha Fúnebre” e mais algumas. Perfeccionista, ele lapidava como diamantes as poucas obras de seu repertório. Era um frequente parceiro do maestro Sergiu Celibidache e compartilhava com ele o perfeccionismo e outras manias. Após as mortes dos dois ( Michelangeli em 1995, Celibidache em 1996), foram aparecendo gravações ao vivo disputadas pelos fãs, incluindo algumas dos dois juntos nos concertos de Ravel, Schumann e Beethoven.
Entre elas, essas gravações de Chopin, em recitais ao vivo entre 1962 e 1990. No Scherzo nº 1, a sonoridade de Michelangeli é aquela que os fãs conhecem: meticulosamente planejada, nada é por acaso: mesmo nos acordes mais fortes e intensos, cada nota é necessária para recriar a atmosfera sombria e trágica que passava pela cabeça de Chopin. O andamento bastante lento escolhido por Michelangeli faz parte dessa exposição transparente de todos os momentos, nada fica escondido, e nisso também, na lentidão, podemos lembrar de Celibidache.
Na Fantasia em Fá menor, obra que alterna entre momentos trágicos e outros de bravura virtuosística, Michelangeli mostra que sua técnica é realmente prodigiosa. Nas valsas e mazurkas que completam o álbum, Michelangeli tem concepções interessantes mas bastante excêntricas. Não temos aqui o ritmo dançante das mazurkas de Barbosa, de Novaes ou de Freire – esses pianistas brasileiros que parecem ter nascido para tocar esse Chopin mais dançante, onde o aspecto trágico também está presente mas apenas nas entrelinhas, mascarado pela dança.
1. Scherzo No. 1 in B Minor Op. 20 13:10
2. Fantaisie in F Minor Op. 49 14:30
3. Valse in A Minor Op. 34.2 7:23
4. Valse in A Flat Major Op. 34.1 5:40
5. Valse in A Flat Major Op. 69.1 4:18
6. Mazurka in A Minor Op. 68.2 3:07
7. Mazurka in F Minor Op. 68.4 3:41
8. Mazurka in A Flat Major Op. 41.4 1:45
9. Mazurka in G Sharp Minor Op. 33.1 2:50
10. Mazurka in D Flat Major Op. 30.3 2:58
11. Mazurka in G Minor Op. 67.2 2:34
12. Mazurka in B Minor Op. 33.4 8:06
Arturo Benedetti Michelangeli, piano
“Quanto precisou sofrer este povo para poder tornar-se tão belo! Agora, porém, acompanha-me à tragédia e sacrifica comigo no templo de ambas as divindades!”
(Nietzsche – O Nascimento da Tragédia)
Jascha Heifetz é a estrela do CD, mas os fãs de Arthur Rubinstein vão certamente se interessar pelo Trio de Ravel, muito bem gravado, com perfeito equilíbrio entre os três instrumentos. E, claro, com Rubinstein no piano e Piatigorsky no violoncelo a interpretação é cheia de nuances e de brilho.
Todos eles compostos na década de 1910, o Trio de Ravel e as Sonatas para violino de Debussy e Respighi eram obras contemporâneas para esses músicos aqui gravados. O Duo de Bohuslav Martinů, de 1927, mais ainda.
O Trio de Ravel e as peças de Debussy trazem todas as sutilezas da música francesa daquele período – aliás, aqui Ravel e Debussy se parecem, mais do que na música orquestral de ambos… E a Sonata do italiano Ottorino Respighi, obra relativamente pouco tocada, também merece o seu lugar ao sol. O encarte do álbum fala assim dela: a sonata robusta e expressiva, que equilibra com sucesso força emocional e substância musical, foi uma das várias boas obras que Heifetz retirou do anonimato: por anos ele foi o único violinista famoso a colocá-la no repertório dos seus recitais.
1-3. Debussy: Sonata para Violino e Piano em sol menor
4. Debussy: La fille au cheveux de lin (dos Prelúdios para Piano, transcrição A. Hartmann)
5-7. Respighi: Sonata para Violino e Piano em si menor
8. Ravel: Menuet (da Sonatina para Piano, transcrição L. Roques)
9-12. Ravel: Trio para Piano, Violino e Violincelo
13-14. Martinů: Duo nº 1 (Preludium – Rondo) para Violino e Violincelo, H 157
Recorded: 1950 (except track 8: 1947; tracks 13-14: 1964)
Jascha Heifetz – violin
Emmanuel Bay – piano (tracks 1-8)
Arthur Rubinstein – piano (tracks 9-12)
Gregor Piatigorsky – cello (tracks 9-14)
Entre os melômanos mais dedicados existe um quase consenso de que a música de câmara permite aos compositores uma atenção aos detalhes – e aos ouvintes a audição transparente desses detalhes na voz de cada um dos instrumentos que se combinam – que fica impossibilitada nas obras para grande orquestra. Cada instrumento, em um trio ou quarteto, tem sua voz autônoma e elas ao mesmo tempo dialogam entre si, isso fica muito evidente desde as Trio Sonatas que surgem por volta do ano 1700, primeiro na Itália e logo depois na Alemanha de Händel e J.S. Bach. No classicismo vienense, o quarteto de cordas se torna o veículo principal para esse tipo de música, não sem relação com um certo ideal de equilíbrio entre as sonoridades dos instrumentos, equilíbrio que é justamente um dos fundamentos para a música da corrente iniciada por Haydn ser chamada classicismo – pois, para além do uso banal do tipo “são clássicos imortais”, o clássico na cultura ocidental envolve certas ideias de simetria, harmonia, ordem etc. que os românticos (e depois os modernistas) vão denunciar como uma ordem autoritária que atrapalha as fantasias e sonhos.
Eu gosto enormemente desse quinteto de Schubert, mais do que dos seus quartetos: não é um gosto racional, é uma daquelas obras que simplesmente tocam mais fundo em alguns de nós, mas, tentando interpretar esse gosto em termos racionais, diria que o quinteto mantém em certos momentos o diálogo transparente da música de câmara e em outros momentos dá uns passos em outra direção. Nessa obra, uma das últimas de Schubert, a transparência já não é completa: cinco instrumentos já estão bem no limite das nossas capacidades de acompanhar as melodias individuais, mas além disso os dois violinos e os dois violoncelos às vezes se fundem no agudo e no grave. Também gosto bastante, claro, do quinteto com piano e contrabaixo “A Truta”, mas aqui neste quinteto mais tardio em dó maior parece que essa mistura das vozes dá um toque diferente que também faz parte da transição entre o classicsmo vienense e a sensibilidade romântica. Sem falar em tantas melodias belíssimas, mas isso é chover no molhado em se tratando de Schubert.
Orpheus Quartet e P. Wispelwey fazem aqui uma interpretação mais contida do que outras que se ouve por aí. Esse quarteto teve uma carreira meteórica, encerrada após a morte precoce do seu primeiro violinista.
Franz Schubert (1797-1828): Quinteto para Cordas D. 956
I. Allegro ma non troppo
II. Adagio
III. Scherzo: Presto – Trio – Andante sostenuto
IV. Allegretto
Orpheus Quartet e Pieter Wispelwey
Recorded: Dutch Reformed Church, Kortenhoef, NL, june 1994
As descrições das semelhanças entre Claude-Achille Debussy (1862-1918) e Maurice Ravel (1875-1937) às vezes são pertinentes e às vezes são exageradas. É claro que os dois viveram na mesma cidade, se viram frequentemente e, até onde se sabe, admiravam-se mutuamente. Talvez seja nas obras para piano solo que as semelhanças entre os dois são mais profundas. Já nas obras vocais, tanto essas para cantora com piano, seja em peças mais amplas com acompanhamento orquestral, as diferenças ficam mais claras. Debussy era um admirador da poesia refinada de Charles Baudelaire, Paul Verlaine, Stéphane Mallarmé e Pierre Louÿs, sendo amigo próximo deste último. Ele escreveu chansons sobre versos desses quatro poetas e, inspirado em Mallarmé, ainda fez o famoso Prélude à l’après-midi d’un faune. Obras cheias de sutilezas e de dissonâncias sedutoras, com uma certa tendência às imagens noturnas (o luar, as estrelas…), o que também aparece na sua única ópera. Nos três poemas de Louÿs extraídos do livro “As canções de Bilitis”, Debussy faz um arco dramático de referências pagãs e termina em tom de luto com versos como “os sátiros estão mortos e as ninfas também”. Louÿs, na época do lançamento do livro (1894), afirmava que os poemas foram encontrados nas paredes de uma tumba em Chipre, escritos por uma mulher da Grécia Antiga chamada Bilitis, uma contemporânea de Safo (a famosa poetisa lésbica). Após enganar o público e mesmo especialistas em antiguidades helênicas, anos depois Louÿs admitiu a pegadinha.
Já Ravel habita um mundo mais simples, menos melancólico, embora o piano de acompanhamento tenha semelhanças com o de Debussy e também com o de Gabriel Fauré (1845-1924), que aliás foi seu professor. As cinco melodias aqui gravadas são canções populares gregas. Assim como em outras de suas obras inspiradas pela Espanha e em seus dois concertos tardios inspirados no jazz, nas canções gregas mesmo os momentos mais lentos e pensativos são mais solares do que quase tudo de Debussy. O pianista aqui é Marc-André Hamelin, que mais recentemente tem gravado muitos discos pela Hyperion, incluindo obras de Debussy (aqui) e de Fauré.
Fête Galante
1-4. Gabriel Fauré: Mandoline, Clair de Lune, Aurore, En sourdine
5-9. Maurice Ravel: Cinq mélodies populaires grecques
10-12. Claude Debussy: Fêtes galantes (En sourdine, Fantoches, Clair de lune)
13-15. Claude Debussy: Trois chansons de Bilitis (La flûte de Pan, La chevelure, Le tombeau des Naïades)
16-23. Francis Poulenc: Métamorphoses, Deux poèmes de Louis Aragon, Trois poèmes de Louis Lalanne
24-29. Arthur Honegger: Saluste du Bartas
30-32. Emile Vuillermoz: Chansons populaires françaises et candiennes
Karin Gauvin (soprano), Marc-André Hamelin (piano)
Recorded circa 1999
Links revalidados em 2024, postagem original de 2022
160 anos de Debussy
Claude-Achille Debussy (Saint-Germain-en-Laye, 22 de Agosto de 1862 — Paris, 25 de Março de 1918)
Debussy escreveu esta nota introdutória para os Noturnos:
“O título Noturnos deve ser entendido aqui em um sentido geral e, sobretudo, decorativo. Não se trata, portanto, da forma usual de um noturno, mas das várias impressões e efeitos especiais da luz que a palavra sugere.
Nuages (Nuvens) evoca o aspecto imutável do céu com o movimento lento e melancólico das nuvens, que se dissolvem em tons de cinza com leves toques de branco.
Fêtes (Festas) trazem o ritmo vibrante, dançante da atmosfera, com lampejos súbitos de luz. Há também o episódio da procissão (uma visão deslumbrante, quimérica), que passa pela cena festiva e se mistura com ela. Mas o pano de fundo permanece sempre o mesmo: o festival com sua mistura de música e poeira luminosa participando do ritmo geral.
Sirènes (Sereias) nos mostra o mar com seus incontáveis ritmos e então, dentre as ondas prateadas pela luz da lua, ouve-se o canto misterioso das Sereias que riem e vão embora.”
Tão geniais quanto o Fauno e La Mer, e situados cronologicamente entre essas duas obras, os Noturnos dão às orquestras e regentes a oportunidade de mostrarem suas capacidades de produzirem sonoridades raras, suaves, momentos de luz e sombra, solos que dependem mais de um cuidadoso cantabile do que de virtuosismo acelerado. Nesse sentido, e só nesse, eles lembram os Noturnos para piano de Chopin, porque em aspectos mais formais essas composições são bem diferentes das do polonês: como o próprio Debussy deixou claro, não se trata de forma dos noturnos que as pianistas adoravam tocar para seus namorados e noivos. Debussy teria sido inspirado por uma série de quadros impressionistas, também intitulados Nocturnes, de James Whistler, pintor que vivia em Paris naquela época. Sem dúvida estão mais próximos da pintura do que dos Noturnos de Chopin.
Em homenagem aos 160 anos de Debussy, vamos fazer um passeio pelas grandes gravações desses Noturnos. De início, nos voltamos para dois regentes dos tempos da brilhantina e das fotos em preto e branco, dois franceses que alcançaram o auge de suas carreiras regendo repertório francês nos EUA: Charles Munch e Paul Paray. A gravação da Symphonie Fantastique de Berlioz por Paray é muito recomendável, assim como o Ravel de Munch, cheio de delicadeza e energia ao mesmo tempo, que você confere nas postagens de FDP Bach aqui (Bolero, La Valse, etc.) e aqui (Daphnis et Chloé). Ambos os maestros também gravaram versões espetaculares da Sinfonia com Órgão de Saint-Saëns, nos primeiros anos do stereo, gravações que muitos audiófilos usaram para testar equipamentos de som, tamanha era a potência dos graves da orquestra e do órgão nos LPs.
Mas o assunto hoje é Debussy, e mais especificamente os seus Noturnos, compostos ao longo de alguns anos, finalizados em 1899 e estreados em 1900 (1º e 2º movimentos) e em 1901 (3º mov.) O motivo para a demora na estreia do 3º movimento, “Sereias”, foi a dificuldade de se ter disponível um coral feminino de altíssimo nível para cantar apenas essa obra de cerca de 10 minutos. Provavelmente por esse motivo, Munch gravou em Boston apenas os dois primeiros noturnos, que não precisam de coral. Toscanini e Bernstein, ambos em Nova York, também gravariam apenas os dois primeiros, talvez pela falta de um coral à disposição.
Arturo Toscanini, aliás, tinha credenciais para se impor como referência em Debussy. Consta que, quando Toscanini regeu a estreia italiana da ópera Pelléas, em 1908, ele convidou Debussy para assistir aos ensaios e à grande estreia. Ele não foi, mas escreveu uma carta que mostra a intimidade entre os dois: “Coloco a sorte de Pelléas em suas mãos, certo como estou de que não poderia desejar outras mais leais ou mais capazes. Pelo mesmo motivo, gostaria de de ter trabalhado ela com você”. Ouçam La Mer com Toscanini, é uma das melhores gravações. Mas aqui, com base nas suas gravações dos Noturnos, ele foi desclassificado porque faltou o 3º movimento.
O francês Paul Paray nasceu em 1886, mesmo ano do alemão W. Furtwangler, e as personalidades dos dois podem ser consideradas como polos extremos. Muito se falou, na crítica especializada, sobre Toscanini como o anti-Furtwangler: de fato, assim como o francês Paray, o italiano corre muito no primeiro movimento: as “Nuvens” parecem sopradas por um forte vento. Enfim, voltando a Paray, ele tentou a sorte como compositor e, após alguns sucessos na década de 1910, largou a caneta para se dedicar à batuta a partir de 1920, ou seja, dois anos após a morte de Debussy. Paray estreou obras de Maurice Ravel, Florent Schmitt, Lili Boulanger e muitos outros. Após passar a vida na França à frente das orquestras Lamoureux e Colonne (se demitindo desta em 1940 em protesto contra os nazistas), Paray deve ter ganhado bem mais dinheiro já idoso, quando assumiu a Orquestra Sinfônica de Detroit, que ele elevou ao nível das maiores do mundo no período em que ali viveu, 1953 a 1963, recebendo altos salários na cidade da Ford, que vivia o boom dos automóveis e do american way of life. As gravações de Paray são quase sempre com andamentos rápidos e um clima leve, despreocupado, é nesse sentido que ele polariza com seu contemporâneo Furtwangler, famoso pelos adagios intermináveis e temperamento sério e grave que, aos olhos de Debussy, soaria como pura prepotência vazia. A gravação de Paray dos Noturnos, porém, me parece exagerar no clima leve e apressado: as nuvens, como já disse, são sopradas com força, e a procissão do segundo movimento corre a ponto de suar… E as sereias, com Paray, cantam tudo em 7min46s, sem o ar de mistério e de suavidade que pedem as indicações da partitura (“modérément animé“, “sourdine“, “trèsexpressifettrèssoutenu“…). Paray poderia ser eliminado nessa competição por queimar a largada, mas mantive sua gravação aqui para termos justamente essa diversidade de pontos de vista sobre Debussy, e repito: ponto de vista de um maestro que, como Toscanini, já era adulto quando Debussy morreu, conheceu vários de seus amigos, então não é nenhum palpiteiro que caiu de para-quedas nesse repertório. Além do mais, o álbum traz a interessante e pouco gravada Petite Suite, de 1889, originalmente para piano e aqui em orquestração de Henri Büsser. Supõe-se que Debussy aprovava essa orquestração, porque ele a regeu em uma das vezes em que pegou a batuta para ganhar uns trocados. Essas gravações da Petite Suite (obra bucólica e simples, que combina mais com o jeitão de Paray) e das Valsas Nobres e Sentimentais de Ravel são absolutamente sensacionais.
Além de Paray, escolhemos outra gravação dos primeiros anos do stereo, período em que a cada ano surgiam inovações nos microfones e outras mudanças tecnológicas muito rápidas. O Debussy da Orquestra da Filadélfia com Ormandy não é tão lembrado, mas chamou nossa atenção desde a primeira audição. Eugene Ormandy (Budapeste 1899 – Filadélfia 1985) estudou violino na Hungria, onde também foi aluno de Bartók e Kodály. Viajou para os EUA para atuar como solista, mas acabou se tornando maestro, primeiro acompanhando filmes mudos e depois passando para o repertório sinfônico.
De 1936 a 1980 esteve à frente da orquestra da Filadélfia, que ficou famosa pelo belo som de seu naipe de cordas, aliás, segundo alguns críticos, certas obras ficavam com uma beleza exterior e sem profundidade. Os maiores solistas da época gravaram na Filadélfia com Ormandy, incluindo Rubinstein, Oistrakh e muitos outros. Como, nos EUA dos anos 1950 e 60, o repertório francês estava praticamente “reservado” para Charles Munch, Paul Paray e Pierre Monteux, Ormandy se destacou em outros compositores como seu compatriota Bartók , o russo Mussorgsky e o espanhol Rodrigo. Mas essas obras de Debussy gravadas entre 1959 e 1964 mostram que Ormandy se sentia em casa também com este compositor – por quem Bartók nutria verdadeira adoração, aliás.
Além de um Prelúdio ao entardecer de um fauno de grande beleza e de uma Danse: Tarantelle styrienne na versão orquestrada por Ravel, temos aqui Noturnos que servem como pinturas detalhadas de três paisagens: primeiro o céu (Nuvens), depois a terra (Festas) e o mar (Sereias). Ormandy segura um pouco os andamentos para mostrar cada detalhe, como o faria depois Haitink com a orquestra do Concertgebouw. Talvez Debussy preferisse sereias um pouco mais agitadas, cantando um pouco mais depressa, mas perdoamos Ormandy pela enorme beleza do conjunto, que não soa arrastado nem pretensioso, ao contrário das interpretações de Giulini (Philharmonia) e Celibidache (Stuttgart). Estes dois últimos regentes (que, grosso modo, são continuadores da tradição germânica de Richard Strauss e Furtwangler) conduzem os Noturnos de forma pomposa, grandiosa, alemã, nada a ver com a suavidade imaginada por Debussy. E no extremo oposto, Paul Paray, o especialista em música francesa já mencionado lá em cima, que despachou os noturnos com uma pressa doida.
Então após ouvir Ormandy, Paray e os desclassificados Giulini e Celibidache, chegamos à conclusão de que a duração do canto das nereias no último noturno deve ficar com não menos que 8 e não mais que 11 minutos. O coro não deve soar heroico (não é Beethoven) nem devocional (não é música religiosa), nem soar carnal e próximo demais: na Odisseia de Homero, ao contrário da feiticeira Circe e da ninfa Calipso, as sereias não encostam em Ulisses, não consumam o ato, apenas cantam no mar enquanto os gregos navegam. Este movimento das Sereias provavelmente foi a partitura que Debussy mais revisou em sua vida, ao longo de vários anos, movido pela enigmática dificuldade de encaixar o som da orquestra e o do coro de mulheres cantando sempre distantes. Vamos ver como os outros maestros e orquestras encaram esse desafio…
Pularemos as décadas de 1970 e 1980, deixando apenas mencionadas três grandes, imensas gravações dos Noturnos que já apareceram aqui no PQPBach: Martinon/Orquestra da Radio Francesa em Paris, Haitink/Orquestra do Concertgebouw de Amsterdam e Jordan/Orquestra da Suisse Romande em Genebra. Nos anos 1990, mais três grandes gravações na América do Norte: Dutoit em Montreal, Boulez em Cleveland, Salonen em Los Angeles. Claudio Abbado é outro maestro com uma forte ligação com esses Noturnos, que ele gravou duas vezes: em Boston (1970) e em Berlim (2001). Só a comparação entre essas duas gravações de Abbado já daria muito pano pra manga.
Mas vamos nos concentrar aqui em duas gravações menos famosas, a de Svetlanov/Philharmonia e a de Paavo Järvi/Cincinnati. Antes, breves palavras sobre duas gravações recentes: Jun Märkl e a Orchestre National de Lyon (2007) têm problemas muito sérios, como os tímpanos em pianissimo em Nuages que ficaram quase inaudíveis… O jovem francês Stéphane Denève e a Scottish National Orchestra (2012) soam bem mais interessantes e anotei aqui que preciso conhecer melhor esse maestro que também tem gravado Ravel, Franck, Roussel, Poulenc… A conferir.
Paavo Järvi (não confundir com seu pai Neeme, também regente) foi eleito artista do ano pelas revistas Gramophone e Diapason no mesmo ano (2016), lançou uma integral de Tchaikovsky no ano passado, enfim, está no auge da sua carreira. Na década de 2010 foi regente principal em Frankfurt e também na Orchestre de Paris, onde curiosamente não gravou nenhum Debussy (seus principais discos em Paris: integral das sinfonias de Sibelius; Réquiem de Fauré; Chopin com Khatia Buniatishvili). Até 2022 esteve à frente da NHK, principal orquestra de Tóquio, e hoje chefia a Tonhalle-Orchester de Zürich, Suíça. Mas a gravação que trazemos aqui é anterior, Paavo Järvi aos quarenta e poucos anos regendo Debussy em Cincinnati, nos EUA.
Ele foi titular da Orquestra de Cincinnati entre 2001 e 2011, com várias gravações realizadas para o semi-defunto selo Telarc. Além do repertório mais famoso neste álbum – Prélude à l’après-midi d’un faune, Nocturnes, La Mer – temos uma obra curta e pouco gravada: Berceuse Héroïque, de 1914, um raríssimo momento em que Debussy expressa sentimentos tristes e solenes. Trata-se de uma “homenagem a Sua Majestade o Rei da Bélgica e a seus soldados”, composta logo após a invasão da Bélgica pelas tropas alemãs, sob resistência heroica dos belgas. É realmente estranho ouvir Debussy melancólico e heroico, mas afinal, o que a guerra não faz com as pessoas, não é?
Mas após esse breve passagem pela Berceuse (em francês: canção de ninar), voltemos aos Noturnos, compostos ainda muito antes de qualquer rumor de guerra: aqui temos o Debussy bem distante de sentimentos românticos, o que lhe preocupava era o lento movimento das nuvens, do mar e, quando ele chega ao elemento humano, no movimento central, são festas e procissões, nada de herói romântico solitário. E há algo de hipnótico nas sereias de Cincinnati, na forma como elas repetem seu canto. Nessa gravação elas estão meio distantes, parecem guardar alguns metros de distância da orquestra, mas talvez seja mera ilusão… é o tipo de música que pode iludir.
Além do canto das sereias que temos enfatizado aqui, outra coisa interessante de se comparar entre as gravações é o rufar grave dos tímpanos no início e do fim do primeiro noturno. Os tambores devem sempre soar discretos, um som atmosférico, pois a partitura indica pianissimo, alternando entre dois e quatro pês (pp, ppp, pppp). E ao mesmo tempo devem ser audíveis, missão nada fácil para músicos e engenheiros de som. Os tambores de Cincinnati com Järvi ficaram bem gravados, mas menos expressivos do que os da Philadelphia Orchestra com Ormandy.
Deixamos por último o disco que, na classificação aqui de casa, reina supremo como a maior gravação dos noturnos: não é um francês, e sim o russo Evgeny Svetlanov (1928-2002) regendo a orquestra inglesa Philharmonia em 1992. Muito lembrado por suas interpretações do repertório russo da chamada belle époque anterior à 1ª Guerra Muncial (Tchaikovsky, Rimsky-Korsakov, Glazunov, Scriabin) e também de Mahler, ele mostra aqui sua proximidade com a estética do compositor francês do mesmo período. Ou será que são os músicos da Philharmonia, orquestra fundada em Londres em 1945 e famosa por suas gravações com Klemperer? O timbre suave e elegante das cordas da Philharmonia lembra as orquestras germânicas, mas sem o ar grandiloquente que Debussy detestava em Wagner.
Na ressonante acústica de igreja onde Svetlanov e a Philharmonia gravaram, o fim do movimento Nuages, com as cordas agudas e os tímpanos suaves e misteriosos enquanto as cordas graves atacam em pizzicato, toda essa combinação ecoando poderia ter resultado em um desastre, mas o resultado aqui também é bastante interessante. O coro The Sixteen, mais famoso por suas gravações de música renascentista (aqui), mostra aqui que também se entende muito bem com esse repertório modernista: as sereias estão distantes e misteriosas, mas não tão distantes a ponto de se dissolverem na água salgada e na maresia. Enfim, uma gravação improvável, pouco badalada, em um selo pequeno, mas que eu considero IMPERDÍVEL.
Svetlanov preferia as gravações ao vivo, mas também gravou em estúdio: sinfonias de Scriabin, de Myaskovsky, de Shostakovich e muito mais. Ele era filho de uma cantora lírica do teatro Bolshoi, e costumava dizer: “Meu ideal é que uma orquestra tenha sua própria personalidade, focando em um som específico e não um som padrão. Com a Orquestra Estatal da URSS [e da Rússia desde 1989], consegui manter uma qualidade lírica especial por 30 anos: as boas orquestras são aquelas que cantam.” [P.S. em 2024: confiram aqui mais Svetlanov regendo repertório francês, dessa vez a Valsa e os Concertos de Ravel e em Moscou]
Porém, mais do que em Moscou, ou em Paris onde ele também gravou Debussy com a Orchestre National de France, parece que Svetlanov brilhou mais ainda nesse repertório francês em Londres: lembremos, aliás, que essa cidade sempre acolheu muito bem a música de Debussy desde quando este ainda era vivo. As cordas da Philharmonia, as cantoras do The Sixteen, a acústica da St. Augustine’s Church, tudo funciona à perfeição aqui.
Conclusão: Todas as gravações aqui trazidas são interessantes, ainda que a do velho Paray em Detroit o seja mais por motivos históricos, para ouvirmos os noturnos na marcha apressada que também era a preferência de Toscanini, regente elogiado pelo próprio Debussy. Ormandy, na Filadélfia, atinge o sublime com o legato misterioso das cordas e com o som de seus sopros e do coro feminino gravado em stereo – tecnologia nova na época – com microfones bastante próximos, mostrando por exemplo as diferenças entre as sereias sopranos e as sereias mezzo-sopranos. Já a orquestra de Cincinnati, com Järvi, foi gravada com microfones mais distantes, uma sonoridade mais suave, um Debussy às vezes imerso em nuvens, às vezes com movimentos hipnóticos. E finalmente, meu favorito é um maestro que, a princípio, não teria currículo para disputar com especialistas em Debussy: o russo Svetlanov. A orquestra Philharmonia, gravada em uma igreja de Londres em 1992, consegue soar ao mesmo tempo próxima e distante, os instrumentos muitos claros mas misteriosos, enfim, tudo com uma fluência típica de um mar calmo ou do vento movendo as nuvens no horizonte.
Paul Paray/Detroit Symphony Orchestra (1958-1961)
1-3. Ravel: Daphnis et Chloé, Suite no. 2
4-11. Ravel: Valses nobles et sentimentales
12. Ravel: Bolero
13-15. Debussy: Nocturnes
16-19. Debussy: Petite Suite (orch. Henri Büsser)
Recorded: Detroit, 1958, 1959, 1961
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. Eugene Ormandy/Philadelphia Orchestra (1959-1964)
1-3. La Mer
4. Prélude à l’après-midi d’un faune
5. Danse (Tarantelle Styrienne) (orch. Maurice Ravel)
6-8. Nocturnes
Recorded: Broadwood Hotel & Town Hall, Philadelphia, 1959, 1964
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. Paavo Järvi/Cincinnati Symphony Orchestra (2004)
1. Prélude à l’après-midi d’un faune
2-4. Nocturnes
5-7. La Mer
8. Berceuse héroïque
Recorded: Music Hall, Cincinnati, 2004
Shostakovich é conhecido principalmente por causa das suas 15 sinfonias e outras obras com orquestra. Mas sua música de câmara também tem grandes obras cheias de personalidade: além dos quartetos de cordas, há muitas obras com piano, incluindo os dois trios que postei semana passada, um quinteto e a sonata para violoncelo e piano. Todas essas são do período em que Shosta era um jovem adulto, a sonata para violoncelo, por exemplo, foi estreada quando ele tinha 28 anos e é cheia de temas arrebatadores, quase românticos, um pouco como as sinfonias nº 4 e 5. O pianista tem uma parte tão interessante quanto o violoncelista: tive o privilégio de assistir essa sonata com Martha Argerich e Mischa Maisky, cujos temperamentos fogosos combinam perfeitamente com a música, como também é o caso dos músicos tchecos deste CD aqui.
Já as sonatas do fim da vida do compositor, uma para violino, de 1968, e uma para viola, de 1975 (sempre com piano) são obras da maturidade, com um certo distanciamento das convenções, uma certa despreocupação de quem já não precisa provar nada a ninguém, uma certa fantasia sem limites, como na Polonaise-Fantaisie e na Barcarola de Chopin, características também das sonatas tardias de Beethoven. E o alemão, aliás, é mencionado no último movimento: Adagio (à memória de Beethoven) nas palavras de Shosta, que colocou nas partes do piano citações bem óbvias da Sonata ao luar. Apesar do tom frequentemente melancólico – é preciso um bocado de tristeza, já disse um poeta – Shosta anotou que o caráter geral da obra deveria ser brilhante, claro e radiante.
A linguagem de Shosta, ainda que com uma personalidade toda diferente, é romântica como o Beethoven maduro e Chopin, sem os excessos de romantismo de seus compatriotas Rachmaninoff e Glazunov (este último, professor de Shosta). As coisas, na vida, não são absolutas, tudo depende da sua posição em relação aos outros. Shosta era bem menos romântico que Rach e bem mais do que Boulez, Ligeti e Lutoslawski. É por meio dessas comparações com quem está ao redor – como mostrou recentemente Mbappé, que está bastante à esquerda de Neymar – que a gente chega mais perto da verdade, bem mais do que em frases categóricas e desposicionadas e até meio sem sentido como por exemplo “Shostakovich era um romântico.” Violoncelistas têm tocado essa sonata para viola desde os anos 1970, com a concordância da viúva do compositor. O “sotaque” tcheco trazido por Kaňka e Klepáč, ao menos para os meus ouvidos, combina perfeitamente com a linguagem do compositor de São Petersburgo.
Dmitri Shostakovich (1906-1975):
1-4. Cello Sonata in D Minor, Op. 40
5-6. Two Pieces for Cello and Piano (from the Second Ballet Suite)
Continuando as homenagens a Antonio Meneses, trago duas gravações: a segunda, direto da rádio alemã, está mais abaixo. Comecemos pelo prato principal, a sua última gravação em estúdio com o Beaux Arts Trio há quase 20 anos, a não ser que apareçam outras até agora engavetadas.
O longevo trio, fundado em 1955 com Pressler como integrante fixo e as cordas mudando, teve Meneses como violoncelista de 1998 até a despedida do trio, em 2008. Depois de 2008, os três músicos seguiram carreiras movimentadas: Pressler tornou-se o decano dos pianistas em atividade, tocando praticamente até a véspera da sua morte aos 99 anos. Em 2007 Pressler e Meneses gravaram uma integral das obras para violoncelo e piano de Beethoven (aqui) e Meneses tocou bastante com orquestras e outros pianistas como Maria João Pires. Assim como Pires e Pressler (dois pianistas de mãos relativamente pequenas), Meneses tinha uma certa discrição que fugia do virtuosismo exagerado: a aparência era bem cuidada, claro, e seus ternos eram elegantes, mas certos detalhes entregavam que a preocupação era mais com o som do que com as câmeras.
Aqui nesta gravação de 2005 pelo trio hiper-cosmopolita (Pressler europeu radicado nos EUA, Meneses brasileiro radicado na Europa, Hope um sul-africano que estudou na Yehudi Menuhin School na Inglaterra), temos obras de fases bem diferentes de Shostakovich: o Trio nº 1, obra de juventude, é composto em um único movimento no qual se alternam momentos rápidos e lentos. O Trio nº 2, com uma divisão bem mais clássica em quatro movimentos como uma obra de Haydn ou Schubert, é um pouco posterior ao Quinteto com Piano e às sinfonias nº 7 e 8, ou seja, época em que Shosta já tinha uma voz bem própria e reconhecida mundialmente. Finalmente os Romances para soprano e trio, Op. 127 (1967), são da última fase do compositor, quando seu temperamento se torna mais calmo e reflexivo, como nas sonatas para violino (1968) e para viola (1975) e nos últimos quartetos.
Dmitri Shostakovich (1906-1975):
1. Trio #1 em dó menor, Op. 8
2-5. Trio #2 em mi menor, Op.67
6-12. Sete Romances sobre versos de Alexander Blok, Op. 127
Beaux Arts Trio (Pressler, Meneses, Hope)
Joan Rodgers, soprano – tracks 6-12
Recorded: Auer Hall, Indiana University, 2005
E fica como sobremesa uma gravação de rádio do então jovem Meneses com a Orquestra da Rádio Bávara e o maestro alemão Michael Gielen. Que eu saiba, Meneses e Gielen nunca lançaram um disco juntos. Nesta gravação de um dos mais belos concertos já compostos para o violoncelo, a orquestra toca com um molho mais encorpado (metáfora de PQPBach), amanteigado, digamos, se comparado com certas interpretações mais secas de Haydn. Mas há, até hoje, gente que gosta desse tipo de som, e aqui ele nunca chega a exageros intoleráveis. É bom lembrar ainda que nos tempos de Haydn as orquestras em Viena, em Esterháza e em Londres, cidades onde Haydn viveu, soavam bem diferentes entre si, então ninguém vai chegar a uma sonoridade matematicamente exata, estamos combinados?
Um disco recente com obras pouco conhecidas de Almeida Prado. Ouçam e cheguem a suas próprias conclusões. Eu cheguei às minhas: Ilhas (1973), escrito na mesma linguagem de Cartas Celestes I (1974) é uma obra impressionante, com um uso monumental das possibilidades expressivas do piano. Os Noturnos (1985-1991) são obras bem mais simples, nas quais o compositor parece ter se voltado para o público dizendo algo na linha de: “vocês querem belas melodias e harmonias emocionantes? Então toma.” Simplicidade não é moleza: há quem faça do uso de poucas e certeiras notas uma marca após anos de experiência no assunto… Prado, pelo contrário, parece achar aqui que é fácil ser simples. Mas Ilhas, que ocupa 1/3 do disco, já vale o download.
“A obra Ilhas foi escrita em 1973, um ano antes da composição do primeiro volume de suas Cartas Celestes, sua obra mais importante para piano. Ela pode ser ouvida como sua predecessora, principalmente pelo uso de um material cordal pré-estabelecido através das sete ilhas, chegando à sua apresentação final no Arquipélago. O gérmen da exploração de sonoridades de ressonância do instrumento também está presente aqui. A associação poética com títulos como Ilha de Gelo, Pedra ou Flores, por exemplo, nos dá a indicação de uma música programática, uma maneira a mais para se identificar com a obra, passando pela ígnea densidade dos 9 vulcões ao majestoso e impessoal iceberg da Ilha de Gelo. Essa é definitivamente uma obra mística que merece ser apreciada a todo volume.” (Aleyson Scopel)
Cá entre nós: Daniel Barenboim merecia uma aposentadoria, uma despedida dos palcos em grande estilo para curtir a vida com a família, amigos, tomar bons vinhos, esse tipo de coisa. Uma despedida em grande estilo, por exemplo, teria sido a série de Sinfonias de Bruckner que regeu em Berlim em 2010, de onde saiu essa gravação da Sétima que mostra toda uma intimidade de maestro e orquestra com o estilo grandioso do compositor austríaco e católico devoto. Barenboim teve uma longa série de sucessos regendo Bruckner com a Sinfônica de Chicago, depois com a Filarmônica de Berlim logo após a morte de Karajan, com aquela orquestra tecnicamente impressionante mas ao mesmo tempo, para muitos críticos, um tanto fria pelo excesso de legato e de toque aveludado. Finalmente, com a Staatskapelle de Berlim ele fez muito Bruckner e anos e anos de óperas de Wagner, cuja linguagem harmônica é mais ou menos a mesma do austríaco que muito o admirava. Barenboim e Staatskapelle fizeram também um excelente Fidelio de Beethoven, obra cujo tom de celebração monumental da liberdade também tem muito a ver com Bruckner. Então eles estão no seu elemento aqui.
É uma pena que Barenboim não tenha se preparado pra parar: em apresentações junto com Martha Argerich na última década, ficou evidente que ele, ao contrário dela, já não tem mais a mesma técnica como pianista, ou tempo e paciência para estudar as horas necessárias. Também como regente, apesar de alguns sucessos recentes, acaba deixando em algumas orquestras a impressão de já não ser lá essas coisas. É comum entre músicos de renome essa falta de tato para planejar a despedida: basta lembrar de Pollini que, após mais de 50 anos de brilho e inimitável pianismo, teve dois ou três últimos anos menos bons como uma pequena mancha na carreira. Também no Brasil temos músicos que já passaram do auge mas seguem nos palcos, por exemplo dois maestros, um que já foi um bom pianista e hoje só sabe dar entrevistas televisivas lamentando as mãos machucadas e falando – sempre sobre si mesmo – pra emocionar quem não entende nada de música… um outro, com a letra K, que já era velho há uns 40 anos… e hoje em dia alterna entre momentos bons e vergonhosos regendo neste nosso país tropical.
Voltando para Barenboim, deve-se mencionar o quanto o maestro veterano é respeitado por gente mais jovem como Gustavo Dudamel e Antonio Pappano. Este último, que já foi seu assistente muitos anos atrás em Bayreuth, conversou com a revista Gramophone sobre o grande especialista em Wagner e Bruckner, mostrando que mesmo quando discorda sobre o significado de uma ou outra obra musical, tem grande respeito pelas escolhas de Barenboim e também pela maneira como ele se relaciona com as orquestras nos ensaios e concertos, respeito esse que, para Pappano, é um significado da palavra influência, muito além de imitações ou cópias baratas:
Barenboim’s track record as a noted Brucknerian, I wondered whether Pappano had ever worked with him on these symphonies. ‘With Barenboim it was mostly opera. I did see him rehearse Bruckner, but not often. And we don’t conduct Bruckner at all the same way! I’ll tell you why, because there are two schools of thought about Bruckner. Interestingly enough, Furtwängler – God, right? – in the long wind-ups to climaxes almost always speeds up, accelerates. And to me, that goes against the tug, the Wagnerian tug. You have to torture people to arrive; it has to be hard won. And of course, Daniel belongs to that school. I don’t. It’s not a criticism at all. But in Bruckner I prefer the slower burn so that when it hits, it’s unbearable. I don’t know if it’s right. I just feel that that’s theway. This whole question of influence is very important. If it’s done right it makes you come to your own conclusions. Not “Oh, you know how he was very influenced by Barenboim”. Of course, I was very influenced by him, but if I conducted the same as him, that’s rubbish. That’s copying. I’m very different from him. I have very different repertoire choices from him. He wouldn’t go near Rachmaninov’s Second in a million years, nor Vaughan Williams. So that’s helped me keep my individuality intact and therefore the influence he’s had on me has been about bigger things: how do you treat tempo in a classical symphony when so much of the material is repetitive. The importance of transforming the themes after a combustible development? How do you deal with the repeat? What is important in conducting? Who do you take care of? Those things are really important. How do you deal with them? And they take a long time.
Anton Bruckner (1824-1896):
Sinfonia Nº 7
Staatskapelle Berlin, Daniel Barenboim
Live Recording: Berlin Philharmonie, 2010
Retrato do artista quando jovem: Schiff tem, até hoje, uma forte afinidade com a música de Schubert, tendo gravado pela Decca, Teldec (aqui) e ECM suas obras de câmara e para piano solo, inclusive mais recentemente em pianos do século XIX. Aqui neste álbum gravado no Japão em 1978 e lançado apenas naquele país, temos o jovem András Schiff com interpretações cheias de um certo fogo juvenil sem exageros românticos, como convém quando se trata de Schubert.
O livreto do CD diz: シューベルトの D. 899 と D. 935… o que, traduzido, significa mais ou menos:
Schubert escreveu dois grupos de “impromptus” em sua vida, D. 899 e D. 935. Ambos, até onde se sabe, datam do fim de 1827, embora alguns possam datar do ano seguinte, o último de vida de Schubert. Mas o próprio nome “impromptus” não foi dado pelo compositor, assim como as peças D. 780 e D. 946 tiveram os nomes “Moments musicaux” e “Klavierstücke” (peças para piano) dados pelos editores. As peças do D. 899 foram publicadas por Tobias Haslinger como Op. 90, com o nome Impromptus anotado a lápis. E na verdade apenas as duas primeiras peças do Op. 90 foram publicadas durante a vida de Schubert. As duas outras, que seriam lançadas em 1828, ficaram na gaveta de Haslinger e seriam publicadas por seu filho só em 1857. Schubert aparentemente gostou do nome “impromptus” dado pelo editor.
Em uma carta de 21 de fevereiro de 1828, Schubert listou suas publicações futuras, que incluíam o Trio em Mi bemol maior, os Quartetos em Sol maior e Ré menor, além de quatro Impromptus para piano. Com isso, muitos biógrafos e comentadores entendem que os dois grupos de Impromptus foram concebidos por Schubert como grupos de quatro peças, mais do que como miniaturas avulsas.
Em outra carta, de 2 de outubro de 1828, Schubert menciona como prontos para publicação “os quatro Impromptus e o Quinteto para vozes masculinas. Por favor me responda logo, eu gostaria de publicar essas obras assim que possível.” É possível, a partir dessas cartas, concluir que o compositor – ele viveria apenas até novembro – tinha em alta conta esses impromptus.
Franz Schubert (1797-1828):
4 Impromptus D. 899
4 Impromptus D. 935
András Schiff, piano
Recorded june 1978 – Arakawa Public Hall, Tokyo, Japan
Escritos entre 1915 e 1923 (1º para violino), entre 1913 e 1921 (3º para piano) e em 1935 (2º para violino), esses concertos são da fase mais internacional de Prokofiev, quando ele se mudou várias vezes mas viveu principalmente em Paris e foi fortemente influenciado pelo estilo orquestral dos balés (anos 1910) e obras neoclássicas (1918 em diante) de Stravinsky. Inclusive o impacto de Stravinsky, naqueles tempos, longe de ter se limitado a Prokofiev, foi imenso e, em comparação, nosso querido Sergei parecia um compositor menor: embora também grande, foi às vezes visto como um imitador, desprovido de grandes originalidades como, por exemplo, o inimitável tom folclórico de Bartók. Hoje, há um certo consenso de que a linguagem de Prokofiev é uma mistura única de coisas que circulavam em sua época e não um mero pastiche.
A orquestra da Suisse Romande e seu maestro, o longevo Ernest Ansermet (1883-1969), eram especialistas em obras desse repertório do início do século, incluindo dezenas de gravações de Stravinsky, Debussy e Honegger. Então é claro que a orquestra se sai muito bem aqui nessas obras de Porkofiev.
Ruggiero Ricci (1918-2012) foi um violinista nascido na Califórnia que também era muito respeitado em obras que, na época, eram ainda contemporâneas, como os concertos e sonatas de Bartók e Prokofiev, a Kammermusik No. 4 de Hindemith, etc. Ele estreou o concerto para violino de Ginastera. Julius Katchen (1926-1969) também nasceu nos EUA e faleceu jovem, de câncer, em Paris.
Sergei Prokofiev (1891-1953):
Violin Concerto No. 1 In D Major, Op. 19
1. I. Andantino
2. II. Scherzo Vivacissimo
3. III. Moderato
Violin Concerto No. 2 In G Minor, Op. 63
4. I. Allegro Moderato
5. II. Andante Assai
6. III. Allegro, Ben Marcato
Piano Concerto No. 3 In C Major, Op. 26
7. I. Andante – Allegro
8. II. Tema Con Variazione
9. III. Allegro Ma Non Troppo
Ruggiero Ricci – violin (tracks: 1-6, recorded 1958)
Julius Katchen – piano (tracks: 7-9, recorded 1953)
Orchestre de la Suisse Romande, Ernest Ansermet
“Minha meta era tocar bem o violoncelo. Então as dificuldades não eram importantes” – Antonio Meneses sobre sua trajetória entre Pernambuco, Rio, Alemanha e Suíça. Mais detalhes aqui e aqui.
O violoncelista era uma das unanimidades entre a equipe do PQPBach. Usando a função de pesquisa do blog vocês podem conferir uma ampla fração do repertório gravado por Meneses: Haydn, Beethoven, Mendelssohn, R. Strauss… além dos brasileiros Ronaldo Miranda, Almeida Prado, Edino Krieger, Marisa Resende e Clóvis Pereira. Villa-Lobos, uma das suas maiores especialidades, é proibido aqui mas pode ser conferido no mundo lá fora. E daqui a poucos dias faremos mais uma homenagem muito merecida.
Duas das obras vocais mais conhecidas de Bach: não só pelas incomparáveis melodias em coros e árias belíssimas, mas também por serem obras grandiosas, celebratórias, com grandes efetivos orquestrais – para o período – incluindo três trompetes (referência bíblica). Ao contrário das Paixões de Cristo e outras várias obras compostas para momentos de seriedade, tristeza, fé e resignação – pois na Leipzig e Weimar de Bach havia forte respeito à quaresma e ao luto após a morte de duques e reis – estas duas obras se destinam a festas, comemorações: a gravidez de Maria (2 de julho no calendário luterano) e o dia da reforma protestante (31 de outubro).
Nessa gravação lançada em 1990 dificilmente algo poderia dar errado: o grupo belga Collegium Vocale Gent e seu maestro Philippe Herreweghe já tinham alguns anos de estrada, desde os tempos em que Gustav Leonhardt os convidara para participar da pioneira gravação integral das cantatas. Os solistas também são de altíssimo nível: especialmente o baixo Peter Kooy é um especialista em Bach, com uma ampla discografia com Herreweghe, Suzuki e outros (em certos lugares ele assina Peter Kooij: como vocês sabem, os holandeses e flamencos adoram vogais dobradas). Mais recentemente, Herreweghe e o Collegium Vocale abandonaram o selo Harmonia Mundi e seguiram gravando cantatas, inclusive com uma 2ª gravação da BWV 80 que eu ouvi mas sigo preferindo esta primeira gravação.
Cantata “Ein Feste Burg Ist Unser Gott”, BWV 80
13. “Ein feste Burg ist unser Gott” [Coral] 4:54
14. “Alles, was von Gott geboren” [Aria – Baixo + Coral] 3:53
15. “Erwäge doch” [Recitativo – Baixo] 1:56
16. “Komm in mein Herzenshaus” [Aria – Soprano] 3:07
17. “Und wenn die Welt voll Teufel wär” [Coral] 3:30
18. “So stehe dann” [Recitativo – Tenor] 1:29
19. “Wie selig sind doch die” [Duetto – Alto, Tenor] 4:04
20. “Das Wort sie sollen lassen stahn” [Coral] 1:25
Collegium Vocale Gent (coro), La Chapelle Royale (orquestra)
Solistas: Agnès Mellon, Barbara Schlick (soprano), Gérard Lesne (alto), Howard Crook (tenor), Peter Kooy (baixo)
Regente: Philippe Herreweghe
Este ano tenho postado vários álbuns gravados pelos veteranos Billy Cobham (bateria) e Ron Carter (baixo): com sax, vibrafone e piano elétrico (aqui), com sax e flauta (aqui)… Aqui eles atacam novamente em formação de trio com o pianista Kenny Barron. Ao vivo na Europa (2001) e no Japão (2003), fazem um repertório sem grandes surpresas: baladas como Autumn Leaves (Kosma/Mercer) e Someday my prince will come (do filme A Branca de Neve), composições novas de Barron e de Carter…
E o destaque maior talvez seja o passeio do trio por ‘Round Midnight e I mean you, composições de Thelonious Monk que aparecem com as sonoridades elegantes e redondas dos três músicos, dando novos significados ao que, nas interpretações com Monk ao piano, sempre soava mais torto e dissonante. As progressões harmônicas de Monk mudaram consideravelmente o pianismo jazzístico, com desdobramentos diretos nos famosos grupos liderados por Miles Davis e John Coltrane (anos 50-60), no trio americano e no quarteto europeu de Keith Jarrett (anos 70-90), etc. Temos aqui grandes releituras das inovações de Monk por três instrumentistas de longo currículo, nenhum deles se apagando em prol dos outros.
The Art of Three (2001)
1. Stella by Starlight
Written by N. Washington, V. Young
2. Autumn Leaves
Written by Prevert, Mercer, Kosma
3. New Waltz
Written by Ron Carter
4. Bouncing With Bud
Written by Bud Powell
5. ‘Round Midnight
Written by C. Williams, Thelonious Monk
6. And Then Again
Written by Kenny Barron
7. I Thought About You
Written by J. Van Heusen, J. Mercer
8. Someday my Prince will come
Written by Frank Churchill, Larry Morey
Billy Cobhan – drums, Ron Carter – bass, Kenny Barron – piano
Recorded jan 2001 in Odense, Denmark & Oslo, Norway
Se quisermos usar uma metáfora familiar, as sonatas para teclado de Antonio Soler podem ser consideradas primas, sobrinhas ou mesmo irmãs mais novas das sonatas de Domenico Scarlatti, embora não sejam irmãs gêmeas. Ambos os compositores viveram na Espanha em um período de coexistência do cravo com o pianoforte. Ao contrário de J.S. Bach, que certamente preferia o cravo, Scarlatti e Soler – assim como seus patrões, alunos, amigos – estavam em um contexto de maior ambiguidade entre o velho instrumento e o novo “cravo com martelos”.
É razoável, então, tocar a música de Scarlatti e a de Soler tanto em um instrumento como no outro. No século XX, Alicia de Larrocha (aqui) reinava solitária como a grande intérprete de Soler ao piano, enquanto Scarlatti tinha dois ou três pianistas famosos (aqui, aqui…) que interpretavam sua música com dedos elegantes e suaves, mas também havia pianistas que carregavam nos temperos românticos: longe de mim citar nomes e gerar fofoca, mas o fato é que alguns faziam um Scarlatti horrorosowitz…
Hoje em dia temos um monte de jovens pianistas fazendo boas gravações das sonatas desses dois, sobretudo pela Naxos, que tem um longo projeto de lançar as sonatas completas de Scarlatti sem pressa e com pianistas diferentes. Pelo jeito a gravadora iniciou, mais recentemente, um projeto semelhante dedicado a Soler: há uns 3 ou 4 CDs já lançados, dos quais por enquanto só ouvi o da jovem ucraniana Regina Chernychko, convidada para essa gravação após vencer concursos de piano em Barcelona, Milão e Zurich. Ela faz um belíssimo trabalho aqui, assim como o italiano Francesco Nicolosi.
Domenico Scarlatti (1685-1757): Sonatas K. 52, 77, 79, 111, 139, 170, 176, 277, 344, 340, 388, 398, 456
Francesco Nicolosi, piano
Recorded: Potton Hall, Westleton, Suffolk, UK, 2007
Confesso que eu não me lembrava de ter ouvido algo com o nonagenário maestro Herbert Blomstedt até um ou dois anos atrás, quando seu disco a 3ª de Bruckner (aqui) me chamou a atenção. Seu disco das últimas sinfonias de Schubert, lançado em 2022 também com a orquestra de Leipzig, recebeu elogios intensos nas revistas inglesas. Ainda me resta ouvir a maior parte do seu repertório gravado, seja aquele dedicado aos austro-alemães como Mozart, Beethoven e Brahms, seja as suas muitas gravações de compositores escandinavos (Nielsen e Sibelius, que até hoje têm me emocionado menos do que Grieg e Langgaard). Aliás, Blomstedt é de família sueca e passou boa parte de sua juventude naquele país, embora tenha nascido nos EUA e vivido boa parte da vida adulta na Califórnia. Também foi regente principal em Copenhagen, Oslo e em Leipzig (de 1998 a 2005) com esta orquestra do disco de hoje.
É nessa condição de quem ainda conhece pouco o maestro – e, portanto, menos suspeito de idolatria, da posição de quem aguarda o desfile de conhecimentos do velho mestre, o que acontece um pouco quando ouço o Bruckner de Celibidache ou Jochum – que afirmo: esta sua série de sinfonias de Bruckner com a Gewandhausorchester de Leipzig é um absurdo, um escândalo de tão boa, a começar pela excelente qualidade do áudio, e passou na frente de todas as outras gravações de Bruckner que estavam na minha fila.
Uma breve nota sobre a Quinta de Bruckner: alguns lhe dão o apelido de “Sinfonia Pizzicato”, por ter cordas em pizzicato no início de cada um dos movimentos. Esse vai-e-vem das cordas fazendo essas incisivas sonoridades, e também uma série de temas que vem e vão (às vezes invertidos), fazem dela uma sinfonia de grande coerência interna, com fortes diálogos e simetrias entre os movimentos. O mundo de Bruckner é um mundo ordenado por uma elevada inteligência divina, onisciente e benevolente: isso fica bem explícito na sua Quinta.
O tema que mais se repete, como notarão aqueles que não passaram os últimos 20 anos isolados da sociedade, lembra vagamente o riff de guitarra de Seven Nation Army, composto pelo guitarrista Jack White e sem dúvida o último grande riff do rock’n’roll, tão amplamente tocado e cantado por multidões e plagiado quanto certos riffs dos Beatles e Rolling Stones.
Esta sinfonia já foi muito bem apresentada por PQP aqui, aliás em outra gravação com esse mesmo conjunto de Leipzig que se mostra talvez a maior orquestra bruckneriana do século XXI, então vamos ao que interessa:
Anton Bruckner (1824-1896):
Sinfonia Nº 5 em si bemol maior
Gewandhausorchester de Leipzig, Herbert Blomstedt