.: interlúdio :. É Carnaval! – A História da Guitarra Baiana, parte 3 – Roberto Barreto (BaianaSystem)

O nome BaianaSystem vem da junção de “guitarra baiana” com “sound system”, duas tecnologias criadas respectivamente em Salvador e na Jamaica. Em 2017, logo após lançar aquele que considero o melhor álbum do BaianaSystem, Roberto Barreto, um dos seus fundadores, deu uma entrevista (aqui) na qual demarcou claramente os aspectos subversivos e políticos do Carnaval. Pra quem olhava de longe, podia parecer que o carnaval de Salvador, com abadás de trios sendo parcelados em 12x sem juros, tinha virado uma mercadoria tão elitizada e metida a besta quanto um desses copos caros pra deixar a água gelada. Estamos sempre por um fio dessa derrota completa para as máquinas de lucro (expressão do Baiana) mas ao mesmo tempo os loucos vão fazendo festa, não porque a vida está fácil, mas pelo motivo oposto. Enfim, fala aí, Roberto:

G1 – Muita gente, especialmente no Sudeste, cita a Baiana System como uma banda de axé – ou do novo axé. Esse rótulo incomoda?
Roberto Barreto – Não incomoda porque, na verdade, o axé não existe enquanto gênero. É que, aqui [no Sudeste], as pessoas acabam colocando tudo dentro de uma mesma coisa. Olodum é completamente diferente de Ivete. O que existe é um mercado de axé, que funciona diferente do mercado que a gente surgiu. Quando fazem essa referência ao novo axé, talvez seja por causa de elementos que usamos – das festas de largo, o entendimento do sound system como uma coisa popular, percussão, guitarra, samba… Lógico que tem elementos do que as pessoas conhecem como axé.

“Como é da Bahia, e as pessoas às vezes não conseguem entender, dizem: ‘Funciona no Carnaval, é dançante, então é axé’. Mas não é necessariamente isso. Quando a gente tira esse peso, não se incomoda. A Bahia hoje está justamente numa fase de superar esse estigma do axé que ficou, muitas vezes como uma coisa pejorativa.

G1 – A música da Bahia é, ainda hoje, muito estigmatizada?
Roberto Barreto – Acho que sim. O mercado acabou ditando muito como as coisas aconteceram. Salvador sempre teve uma produção incrível e nunca parou de ter. Mas estamos em um período em que a música passa por uma transformação. O que chega às pessoas não é necessariamente o que vem da grande mídia. Elas conseguem conhecer o que está acontecendo no Pará, em Goiânia, Recife, Salvador… Com essa dimensão, dá para fugir um pouco dessa centralização.

Roberto e sua guitarra baiana de 5 cordas (2016)

[…]
Na Bahia, a coisa do Carnaval é forte. Independentemente do que gera no mercado fonográfico, ele é um catalisador de muita coisa.

G1 – Gerou muita repercussão um protesto da banda contra o governo Temer no Carnaval deste ano, em Salvador. Como lidaram com a polêmica?
Roberto Barreto – Não foi uma coisa programada. A gente já fazia isso em shows, alguns sim, outros não. Como a gente tratou isso com naturalidade, saiu do âmbito da polêmica, que as pessoas quiseram dar. Não tem como a questão política não estar vinculada a nós, porque o nosso comportamento em relação ao mercado e nas nossas letras é eminentemente político. A gente vive um momento dificílimo. Não sabemos se vamos ter presidente amanhã. Estamos vivendo um ano após um golpe acontecer no país.

G1 – Qual o papel dos artistas em momentos políticos como esse?
Roberto Barreto – Cada vez mais, se posicionarem. Ficou uma coisa muito asséptica. Todo o mundo acha que não pode falar isso ou aquilo. Você pode falar. Quando a gente definiu que o nome do nosso disco ia ser “Duas Cidades”, percebemos que não é só a cidade, o Brasil está dividido. Você vê famílias brigando, pessoas se digladiando no Facebook.

Você tem que se posicionar em relação a isso, mesmo que depois diga: ‘Vacilei nisso, achei que era uma coisa, me decepcionei’. Mas tem que falar.

A cada Carnaval, o BaianaSystem sai com seu trio Navio Pirata, sem cobrança de abadás. Enquanto o Chiclete com Banana – e seu ex-cantor Bell Marques, em carreira solo desde 2014 – continuam saindo em trios elétricos com cercadinho separando os pagantes da ralé, o Baiana arrasta a cada ano mais povo na bagunça indeferenciada, a mais carnavalesca dos nossos tempos, ao menos na Bahia.

Em outra entrevista, Roberto fala sobre sua relação com a guitarra baiana, instrumento que ele inseriu em uma linguagem musical próxima das gerações hoje com 20, 30 anos e próxima também do reggae jamaicano.

A guitarra não foi o meu primeiro instrumento. Comecei tocando o bandolim já com essa afinação da guitarra baiana e com essa referência dos trios elétricos e das músicas de carnaval. Não vejo muito como um instrumento, mas sim como um meio de expressar ideias e sentimentos. Por ser um instrumento criado e concebido aqui na Bahia existe a parte afetiva e junto com isso, acompanha uma estética musical que é única em um repertório (aqui).

BaianaSystem: Duas Cidades (2016)
A1 Jah Jah Revolta Parte 2
A2 Bala Na Agulha
A3 Lucro (Descomprimindo)
A4 Duas Cidades
A5 Panela
B1 Playsom
B2 Dia Da Caça
B3 Cigano
B4 Calamatraca
B5 Barra Avenida Parte 2
B6 Azul

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No Carnaval de 2023

Pleyel

.: interlúdio :. É Carnaval! – A História da Guitarra Baiana, parte 2 – Missinho (Chiclete com Banana)

O clima da cidade se torna outro. A atmosfera mais densa do que o lança-perfume que a senhora leva na bolsa. Todos os exus e santos estão à solta. As ruas de madrugada apinhadas de gente. O cheiro de mijo e álcool. As normas se alternam, a moral se amolece. Tudo parece poder acontecer, para o bem e para o mal.

O dia já havia nascido quando olhei o mar de gente, suada e semi-nua, debaixo do sol. Homens sem camisas, mulheres de peito de fora. E pensei: enfim civilização.
(Matheus Ultra)

Seguindo com a história de um dos instrumentos mais legitimamente brasileiros – ainda que quase totalmente restrito às proximidades da Baía de Todos os Santos – chegamos nos anos 1980 com um grupo que, como Armandinho, era e ainda é sinônimo de Carnaval: Chiclete com Banana. Sim, eu sei que eles fizeram muita porcaria depois, quando o Axé foi vendido para todo o país a partir, em primeiro lugar, de programas como o do Chacrinha, o da Xuxa e o do Faustão. Mas a história dos primeiros anos do Chiclete com Banana, além de conter inovações que se firmaram em todos os trios elétricos (assim como Dodô, Osmar e Armandinho, dá pra resumir como a amplificação dos velhíssimos batuques de Carnaval de modo a ocupar largas avenidas e praças com povo a sair pelo ralo), também tem música muito diferente do que o Chiclete se tornaria.

A história não vai surpreender os fãs de Pink Floyd: fundada por três irmãos Marques mais o guitarrista Missinho, este último fazia a maioria das músicas e tinha um estilo bastante único nas duas guitarras, a estrangeira e a baiana. Depois de alguns anos arrastando multidões em Salvador mas apenas em Salvador, Missinho cansou e saiu quando a banda começava a decolar para o sucesso nacional.

Os discos Energia (1984) e Sementes (1985) trazem música extremamente carnavalesca e ao mesmo tempo sofisticada e original, com a marca principal do Chiclete com Banana que é a mistura de tudo e mais um pouco, sem qualquer preocupação com o que vão pensar de se misturar Miami com Copacabana, chicletes com banana, rock e tamborim, metáforas do samba do baiano Gordurinha (1922 – 1969), “Chiclete com Banana”, regravado por Gilberto Gil em 1972, nome que a banda, como de costume, usou sem pedir licença ou bênção.

É também sem um pingo de vergonha que, em Energia (1984), eles vão da estrelas ao luar, de Pink Floyd a “um forró de Luiz”, da fogueira e balão de São João ao oceano, de Cuba à guitarra de Santana. Também Xangô, Oxum e o Ilê Aiyê. Tudo isso é citado nas letras, pra não falar dos vários empréstimos rítmicos e melódicos. Há ainda truques poéticos de sinestesia psicodélica como “bailando ao som de lindos astros”…

A cabeça que juntava com poesia essas fusões improváveis era Missinho, e ele dividia os vocais principais com Bell Marques mais ou menos metade das música pra cada um cantar. Depois da saída de Missinho em 1986, Bell ficou como líder da banda, e tem até hoje uma excelente voz e carisma no palco e no trio elétrico… mas em mais de 30 anos ele e seus dois irmãos devem ter tido talvez uma ou duas ideias próprias. Então o Chiclete com Banana ficou seguindo as modas dos anos 90 e 2000 sem a guitarra de Missinho: até 2000 ainda havia o guitarrista Jhonny, cria de Missinho (convidado por este para entrar na banda quando tinha 16 anos). Mas Johnny saiu em 2000. Em 2014, Bell Marques fez seu Carnaval de despedida com o Chiclete, saindo em carreira solo por motivos exclusivamente financeiros. O Chiclete, então, seguiu com os dois irmãos Marques como uma sombra ainda mais apagada do que tinha sido.

Mas voltemos para os primeiros anos. Faz muito tempo mesmo: o presidente ainda era o general Figueiredo, tinha até Censura prévia e por motivos não muito claros duas faixas de “Energia” foram censuradas: uma delas talvez por uma leve, levíssima conotação política e a outra por conservadorismo sexual mesmo, já que tinha versos como “transa ao luar” (rimando em seguida com Ravi Shankar!), o que incomodava um tipo de gente que fazia de tudo desde que entre quatro paredes. Essas duas faixas, então, circularam apenas em meia dúzia de LPs e aparecem aqui como bonus-tracks com o chiado do vinil.

Wadinho Marques, que hoje toca teclados mas em 1984 recebeu os créditos por violão, backing vocals e autoria de uma das músicas, explica o nome da banda: “Foi um amigo nosso, Nildão, cartunista, artista plástico aqui da Bahia que sugeriu que nós colocássemos esse nome, Chiclete com Banana pelo tipo de música que a gente fazia, nós misturamos muitos ritmos, há muito tempo que nós tocamos galope, reggae, rock, frevo, então ele via isso e achava que tinha que ser representado por um nome que fosse uma mistura. E nada mais que uma mistura tão louca como chiclete com banana.”

Nildão, aliás, é o responsável pela capa deste álbum, com uma Iemanjá surfista que pode parecer um sincretismo brilhante ou inadequado, a depender de quem olha. Representa bem, então, a música do disco. O destaque maior, em termos de guitarra baiana, é a primeira faixa, Mistério das Estrelas, com um ritmo de galope irresistível, como também sabe ser irresistível, às vezes, a voz aguda* nesta faixa ou então na faixa-título de Sementes, também de autoria de Missinho e transbordantemente carnavalesca.

* A voz é a de Missinho em Mistério das Estrelas. De Bell em Sementes. Em outras, é difícil de identificar. Na capa de Sementes, acima, Missinho é o cabeludo em pé de relógio; Johnny agachado no meio e Bell Marques agachado à direita.

Chiclete com Banana: Energia (1984)
A1 O Mistério das Estrelas (Missinho)
A2 Canto De Aledê (Missinho)
A3 Sujo Astral (Bell Marques/G. Roberto)
A4 Meu Balão (Missinho)
A5 Ondas De Baião (Missinho/Beto Nascimento)
B1 Luas (Missinho/Beto Nascimento)
B2 A Cor Do Cristal (Missinho/Beto Nascimento)
B3 Bahia Cubana (Missinho/Hercules Amorim)
B4 Me Segura Que Vou Dá Um Traço (Wadinho Marques)
B5 Estrela Menina (Missinho/Beto Nascimento)
Apenas vença (faixa bônus, censurada)
Minha gatinha é macrô (faixa bônus, censurada)

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P.S.: “Hoje o que vemos é um Carnaval feito para a elite”, dizia Missinho em 2014 em entrevista de lançamento do seu disco Instrumental Guitarra Baiana (que está todo no Youtube aqui). Enquanto isso, as declaraçoes públicas de Bell Marques são do tipo “aproveita agora para parcelar em 12 vezes o seu abadá para o Carnaval do ano que vem”…

Ao ser perguntado se ele tinha o desejo de tocar novamente com alguém, Missinho disse que era um desejo impossível, pois apesar de ter conhecido grandes artistas e músicos, a companhia que gostaria de reencontrar em cima dos trios era a de Osmar [pai do Armandinho que apareceu aqui ontem]. “Ele é uma figura que deixou uma saudade muito grande. Tinha uma juventude arrebatadora. Eu tinha uns 20 anos quando toquei com ele e ficava olhando, observando e admirado sua energia. Me apaixonei de primeira pela aquela emoção. Me perguntava como ele podia ter aquela energia toda? Depois eu mesmo me respondia dizendo: poxa, um cara que inventou o trio elétrico tinha que ser assim mesmo”, disse aos risos e lamentou: “Ele faz falta no Carnaval”.

Missinho e sua guitarra baiana de 4 cordas (2014)

Pleyel

.: interlúdio :. É Carnaval! – A História da Guitarra Baiana, parte 1 – Armandinho: A Cor Do Som ao vivo em Montreux

Carnaval: celebração coletiva que afronta o individualismo e a decadência da vida em grupo; conjunto de ritos que reavivam laços contrários à diluição comunitária, fortalecem pertencimentos e sociabilidades e criam redes de proteção social nas frestas do desencanto. (Luiz Antônio Simas)

Não me leve a mal que hoje é Carnaval então vou poupá-los dos textos longos. Como sabemos, a guitarra baiana é um instrumento elétrico de tamanho mais próximo do bandolim ou do cavaquinho do que da guitarra inventada pelos gringos. Instrumento essencial nos primeiros trios elétricos de Salvador, foi inventada por Dodô e Osmar, que também inventaram o trio – em resumo um bloco carnavalesco com música microfonada e amplificada. Mas naquela época, anos 1950, o instrumento ainda era chamado “pau elétrico” ou “cavaquinho elétrico”. No fim dos 60, Armandinho, filho de Osmar, começou a fazer com o instrumento solos de linguagem guitarrística inspirada em Jimi Hendrix, mas ao mesmo tempo, é claro, sem perder a reverência a Jacob do Bandolim, ao frevo pernambucano e a ligação anual com a festa de rua mais popular de Salvador, sem falar no berimbau também típico da cidade mais africana do Brasil.

Armandinho é sinônimo de Carnaval baiano e guitarra baiana até hoje. Mas durante o resto do ano ele também tem outros talentos: no fim dos anos 1970 criou a banda A Cor do Som, com colegas cariocas também interessados em misturar o rock de Londres com coisas como o chorinho tão carioca de Ernesto Nazareth, sem esquecer a guitarra baiana.

A Cor do Som – em atividade até hoje, com alguns longos hiatos – também poderia ser entendida historicamente como uma terceira onda de influência sincrética baiana no eixo Rio-São Paulo: a maioria dos músicos fazia parte das bandas de apoio de Moraes Moreira e outros dos Novos Baianos, que por sua vez tinham esse nome para diferenciá-los da leva anterior de baianos da Tropicália (Gil, Caetano, Gal e Bethânia).

A Cor do Som: Ao Vivo em Montreux (1978)
1 Dança Saci (Mu)
2 Chegando da terra (Armandinho)
3 Arpoador (Mu/Dadi/Gustavo/Armandinho)
4 Cochabamba (Aroldo/Moraes Moreira)
5 Brejeiro (Ernesto Nazareth)
6 Espírito infantil (Mu)
7 Festa na rua (Mu/Aroldo/Dadi/Armandinho)
8 Eleanor Rigby (McCartney/Lennon)

Armandinho – guitarra baiana
Aroldo – guitarra baiana
Mú – teclados
Dadi – baixo
Gustavo – bateria
Ari – percussão

Gravado ao vivo em julho de 1978 durante apresentação no 12º Festival de Jazz no Cassino de Montreux, Suíça

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A Cor do Som em 2014 (Ary Dias, Armandinho e outros fora da foto) com participação do inesquecível Moraes Moreira

Pleyel

.: interlúdio :. Maria Bethânia canta Noel Rosa (1966)

Maria Bethânia canta com a liberdade dos pássaros para fora e para cima, mas sem perda dessa intimidade fundamental à comunicação. – Vinícius de Moraes, no encarte do compacto duplo

Os seis sambas de Noel deste compacto duplo gravado em 1965 parecem ter sido escolhidos para uma quarta-feira de cinzas. É o Noel do pierrot apaixonado que acaba chorando… da mentira descoberta… do último desejo depois da separação…

Nem sombra aqui da Bethânia intérprete de sambas alegres de Chico Buarque e Dona Ivone Lara. Pois é… a jovem Bethânia sabia que todo carnaval tem seu fim.

Maria Bethânia – Maria Bethânia Canta Noel Rosa (1966)
01. Três Apitos (Noel Rosa) (2:52)
02. Pra Que Mentir? (Noel Rosa – Vadico) (3:11)
03. Pierrot Apaixonado (Heitor dos Prazeres – Noel Rosa) (2:29)
04. Meu Barracão (Noel Rosa) (2:57)
05. Último Desejo (Noel Rosa) (2:58)
06. Silêncio de um Minuto (Noel Rosa) (2:54)

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Pleyel

.: interlúdio :. História Musical de Noel Rosa (1910-1937)

Na música clássica muito tem se falado em “interpretações historicamente informadas”, “instrumentos autênticos” etc. Pois este disco com 60 canções de um dos maiores sambistas de todos os tempos é autêntico até não poder mais: a cantora Marília Batista foi uma das intérpretes preferidas de Noel. Os arranjos são assinados por Guerra Peixe, que além de grande nome da nossa música clássica também  trabalhou por anos como arranjador em rádios do Rio de Janeiro e do Recife.

Ressalto dois pontos que são autênticos. Marília segue as letras de Noel palavra por palavra, por exemplo “com que roupa eu vou ao samba que você me convidou?” enquanto hoje todos cantam “pro samba”. E a pronúncia: duvido muito que os boêmios da Lapa ou de Vila Isabel falassem aqueles erres enrrrrolados no dia a dia. Acontece que a geração de Noel Rosa foi marcada pelo rádio e, naqueles anos 20 e 30, a transmissão não tinha a qualidade de áudio com que estamos acostumados, de modo que os cantores precisavam acentuar algumas consoantes e vogais para serem compreendidos. Outros sambistas cariocas da geração de Noel, como Cartola e Orlando Silva, também cantavam com erres enrolados, assim como a francesa Edith Piaf, famosa por seu “Non, je ne regrette rrrrrien”. Anos depois, uma geração nascida após 1930 chamaria atenção por cantar de um jeito diferente, suave, com sotaque igual ao da língua falada, e essas mudanças se deveram não só à genialidade de um João Gilberto e uma Nara Leão mas também aos avanços na tecnologia dos microfones, discos e rádios.

Neste upload o som é do relançamento em CD, as imagens são digitalizadas do LP original, que inclui textos como:

Morto Noel, Marília acabou preferindo emudecer também. O casamento, os deveres de mãe, talvez um certo desencanto pelo mercantilismo de que se ia eivando o ambiente da nossa música popular, terminaram por afastar a Princesinha do Samba dos microfones e dos estúdios de gravação. Mas havia um compromisso de deixar o seu depoimento musical sobre Noel Rosa e sua obra, gravando tudo quanto ele lhe transmitiu.
Noel por noel
A morte de Noel Rosa, de prematura que foi, colhendo-o em pleno apogeu de sua trajetória genial, fez sangrar fundamente o coração de nosso povo – que se sentia retratado (ou caricaturado) em quase todas as suas produções. Em consequência, as músicas de Noel começaram a ser cantadas num andamento diferente do original, um andamento por demais lento, quase lembrando balada, como se cada uma delas, de buliçosa e vibrátil que era, passasse a ter qualquer coisa de um “De Profundis” ou de um “Miserere”, gotejando lágrimas de mágoa e de saudade pelo seu finado criador. A verdade é que Noel Rosa foi, acima de tudo, sem sombra de dúvida, um trovador alegra, irônico, irreverente. Seus versos de amor nunca foram alambicados nem tangenciaram as elegias choramingas dos que só sabem lamentar-se.

O Noel Rosa que Marília Batista nos traz de volta é um Noel exato, autêntico, legítimo, com as suas músicas interpretadas tal e qual o próprio Noel lhas transmitiu. Apenas o que há agora (e no tempo de Noel ainda não havia) é a fabulosa riqueza da roupagem sonora, fruto dos mais modernos recursos de orquestração e da mais avançada técnica de gravação.

Ouvindo a nova música de Noel, orquestrada por Guerra Peixe, sentimos o brilhante talento do Poeta da Vila em toda a sua plena exuberância, vestindo a roupagem sonora que sempre havia merecido.

Visando a obtenção de um melhor equilíbrio no estilo e no andamento das 60 melodias programadas, foram elas reunidas em 12 grupos distintos, sucedendo-se as cinco músicas de cada grupo, umas às outras, sem interrupção. Para a gravação foi usada uma orquestra de cordas, com flauta, trombone, violão, basso e percussão, além de dois outros conjuntos: o primeiro, com flauta, trombone, violão, basso, dois clarinetes e percussão, e o outro com flauta, clarone, dois clarinetes, violão, basso e percussão. Em alguns grupos tivemos a participação de um grupo de coristas.

Assinalemos, também, a presença neste álbum de quatro sambas praticamente inéditos: O  maior castigo que eu te dou, Verdade duvidosa, Para atender a pedido e Cara ou coroa. Não temos notícia de que qualquer um deles tenha sido gravado. Sambista acima de tudo, Noel Rosa não desdenhava de ingressar nos domínios da marcha. Por isso, cinco delas aqui aparecem, reunidas num grupo, Cidade mulher, Você por exemplo, Pierrot apaixonado, A-e-i-o-u Pastorinhas ou Linda Pequena.

Verde-amarelo como os que mais o fossem, Noel não deixou de fazer uma breve concessão à música de fora. Daí resultou a produção de Julieta, que ele costumava cantar com andamento de foxtrot e que aqui aparece em ritmo de samba.

História Musical de Noel Rosa

CD1
1 – Pra que mentir / Feitio de oração / Só pode ser você / Silêncio de um minuto / Voltaste
2 – Vai haver barulho no château / Onde está a honestidade / Você vai se quiser / Vitória / Eu vou pra Vila
3 – Cordiais saudações / Positivismo / O maior castigo que eu te dou / Riso de criança / Para me livrar do mal
4 – Rapaz folgado / Coração / Quando o samba acabou / Prazer em conhecê-lo / Pela décima vez
5 – Século do progresso / Dama do cabaret / Três apitos / Esquina da vida / X do problema
6 – Eu sei sofrer / Filosofia / Pela primeira vez / Fita amarela / O orvalho vem caindo

CD2
1 – Coisas nossas / Gago apaixonado / Julieta / Não tem tradução / Amor de parceria
2 – João Ninguém / Último desejo / Poema popular / Para esquecer / Cor de cinza
3 – Tarzan (O filho do alfaiate) / Conversa de botequim / De babado / Com que roupa / Até amanhã
4 – Verdade duvidosa / Para atender a pedido / Meu barracão / Cara ou coroa (Vai pra casa) / Mentir
5 – Feitiço da Vila / Palpite feliz / Provei / Quem ri melhor / Quantos beijos
6 – Cidade mulher / Você por exemplo / Pierrot apaixonado / A-E-I-O-U / Pastorinhas

Composições de Noel Rosa (1910-1937)
Voz: Marília Batista (1917-1990)
Arranjos: César Guerra-Peixe (1914-1993)
Gravado em 1963

MP3: BAIXE AQUI (DOWNLOAD HERE)
FLAC: BAIXE AQUI (PARTE 1) E AQUI (PARTE 2)

Marília tocando violão e Noel Rosa, o último à direita. O queixo dele era assim mesmo, não é montagem.
Marília tocando violão e Noel Rosa, o último à direita. O queixo dele era assim mesmo, não é montagem.

Pleyel