As cinco sonatas para piano e violoncelo compostas por Beethoven têm uma vantagem em relação às sonatas para violino e aos concertos: abrangem as três fases de sua produção musical. Ou seja, em apenas dois CDs, pode-se ouvir um panorama da evolução musical do compositor, de forma mais resumida do que ao ouvirmos as 32 sonatas para piano solo. Como escreveu o pianista Paul Komen, são como peças de um quebra-cabeças que se combinam para formar um retrato de Beethoven em todos os aspectos de sua vida musical.
A primeira fase das obras com opus segue modelos típicos de Haydn e Mozart, mas já com algumas características próprias. As duas sonatas do opus 5 (1796) seguem o mesmo esquema: primeiro movimento lento, como uma preparação para o que está por vir; segundo movimento rápido com um tema marcante; terceiro movimento em rondó, forma caracterizada por uma seção principal (A) que se repete como um refrão, alternando com uma ou mais seções secundárias (B, C, D, etc.)
A segunda fase tem como marco inicial a 3ª Sinfonia, “Heróica (1804), é o Beethoven mais grandioso, da ópera Fidelio (1805) e da 5ª Sinfonia (1808). Esta fase, associada à época das revoluções e guerras napoleônicas, vai mais ou menos até o opus 93 (8ª sinfonia) ou o opus 97 (Trio Arquiduque) ou um pouco depois, não há consenso. A Sonata para piano e violoncelo op. 69 (1807), com seus arroubos de sentimentos à flor da pele desde o primeiro movimento, representa perfeitamente essa face de Beethoven, e é hoje talvez a mais famosa deste ciclo de cinco sonatas. Assim como nas sinfonias mais famosas do compositor, a obra não tem aquela introdução lenta típica do classicismo vienense: o violoncelo já chega chutando a porta com um tema bastante sentimental (Allegro ma non tanto – uma boa descrição do caráter de toda a sonata).
E finalmente a última fase, de cerca de 1811 até sua morte em 1827, quando o compositor compôs poucas obras por ano, mas cada vez mais complexas, menos destinadas a agradar ao público da época e mais voltadas para o futuro (já surdo, ele provavelmente ligava pouco para os aplausos). Nesta última fase, em quase todas as obras aparece alguma fuga, forma musical típica dos tempos de J.S.Bach. Assim, Beethoven olha para o futuro ao mesmo tempo em que intensifica o estudo dos mestres do passado.
Na segunda metade do século XX, uma série de músicos também buscou estudar profundamente a música do passado a partir dos documentos de época: tratados, cartas, artigos, além, é claro, dos próprios instrumentos e das pistas que eles deixavam sobre a música de tempos idos.
Alexei Lubimov (nascido em Moscou, 1944), um dos pioneiros no uso de pianos de época, escreveu: “cada instrumento pode nos dar pistas sobre o que o compositor estava pensando e ouvindo enquanto trabalhava. Para mim, tocar música antiga em um piano moderno é uma transcrição, não a peça original.”.
O pianoforte Broadwood de 1823, usado nesta gravação, é do mesmo modelo daquele que foi enviado por John Broadwood para Beethoven em 1818 como um presente e homenagem de Clementi e outros amantes da música de Beethoven residentes na Inglaterra, um gesto que o compositor apreciou como uma grande honra. Este instrumento inglês faz uma excelente harmonia com o violoncelo de 1710, também de origem inglesa, produzindo sons que vão do mais frágil pianíssimo até explosões heroicas que levam esses instrumentos ao limite. O som do pianoforte, que dura menos tempo após o dedo sair da tecla (em comparação com pianos modernos), permite que as passagens mais rápidas soem com uma clareza admirável. Por outro lado, na fuga da quinta sonata (de 1815), a clareza contrapontística dos dois russos carecas é imbatível, mesmo 50 anos depois daquela antológica gravação. Na dúvida, fique com os dois: instrumentos modernos e antigos!
Ludwig van Beethoven – Sonatas para Pianoforte e Violoncelo
Sonata Op.5 nº1 em Fá Maior
1-1 Adagio Sostenuto
1-2 Allegro
1-3 Rondo (Allegro Vivace)
Sonata Op.5 nº2 em Sol Menor
1-4 Adagio Sostenuto e Espressivo
1-5 Allegro Molto Più Tosto Presto
1-6 Rondo (Allegro)
Sonate Op.69 em Lá Maior
2-1 Allegro Ma Non Tanto
2-2 Scherzo (Allegro Molto)
2-3 Adagio Cantabile
2-4 Allegro Vivace
Sonate Op.102 nº1 em Dó Maior
2-5 Andante
2-6 Allegro Vivace
2-7 Adagio
2-8 Allegro Vivace
Sonate Op.102 nº2 em Ré Maior
2-9 Allegro Con Brio
2-10 Adagio Con Molto Sentimento d’Affetto
2-11 Allegro Fugato
Pieter Wispelwey – cello (Barak Norman, 1710)
Paul Komen – pianoforte (Broadwood, 1823)
Gravado na Igreja Protestante de Renswoude, Países Baixos, em Junho de 1991
BAIXE AQUI – DOWNLOAD HERE
Pleyel
Muito bom texto. Adorei!
Tenho sentimentos divididos quanto ao uso de instrumentos de época – sobretudo quando envolve piano e Beethoven. Afinal, Ludwig declarou em mais de uma ocasião que o piano que ele queria ainda não fora construído. Em seus encontros com construtores de piano, ele advogava a criação de instrumentos maiores e mais potentes. Por fim, o piano recebido em 1818 jamais foi ouvido por ele, não se podendo inferir qualquer influência de seu som sobre as composições da fase final de Beethoven. Isso tudo sem falar que os instrumentos de época – e isso vale para Bach, Mozart e todos os demais – variaram no decorrer da vida de cada compositor e também de acordo com a cidade em que estavam e os meios que dispunham. Os instrumentos que Haydn ouvia em sua juventude, por exemplo, eram diferentes dos que ele ouvia ao final da vida. Qual é, nesse universo todo, o som “legítimo”? Será que Bach, caso ouvisse o Primeiro Brandemburgo, preferiria os sopros barrocos originais, mais estridentes, ou aqueles aprimorados posteriormente e melhor integrados às cordas? E, considerando que instrumentos de época ou réplicas fieis são extremamente raros, devemos admitir como legítima apenas a interpretação possível em alguns poucos lugares da Europa? Não sei o que responder. Mas confesso que prefiro o velho Ludovico em um pianão de cauda atual. 🙂
Pqp,
Gratidão imensa por ter criado e mantido este buraco da internet.
Igor,
Nada contra os comentários curtos e grossos, todos têm seu lugar, mas as suas questões levantam lá no alto o nível do debate sobre instrumentos de época. Tanto em termos musicais como em termos mercadológicos. Sim, instrumentos antigos são caros, raros, mas isso também traz à tona o cuidado que merecem os instrumentos antigos que temos no Brasil: órgãos, cravos, espinetas, violinos do período da colônia e do império. Quantos não estão aguardando uma reforma? Quantos CDs estão à venda trazendo o som único desses instrumentos? Talvez uma dúzia de CDs difíceis de achar.
Não há som legítimo e ilegítimo, isso são mesmo bobagens, existe uma pluralidade de formas de se tocar compositores multifacetados como Beethoven, com um pé em Bonn e outro em Viena, um no antigo regime, um na revolução,um na contra-revolução. São muitos pés, como aquelas divindades hindus.
Obrigado pela resposta! E, aproveitando: Pleyel, PQP e demais amigos do site: vocês recomendam algum artigo ou livro que discuta essa questão dos instrumentos de época? Ou a música erudita em geral?
Nas primeiras vezes que vi uma capa de disco mencionando “tocado em instrumentos de época”, eu achei fantástico. E gostei de ouvir, sobretudo música barroca. Já as sinfonias de Beethoven interpretadas pela Academy of Ancient Music me deram a impressão que “falta alguma coisa”. E desde então comecei a ter mais dúvidas do que certezas sobre instrumentos de época.
Algo parecido se dá em outros temas. Quando leio o Celibidache ou o Milton Ribeiro dizerem que Karajan é péssimo, tendo a aceitar pela envergadura de quem está afirmando. Mas daí eu ouço Karajan regendo Sibelius ou mesmo Beethoven e não identifico nada tão péssimo. Há outras interpretações melhores, mas me falta conhecimento para dizer que é péssimo. Ou ruim, apesar do exibicionismo do maestro.
Enfim, gostaria de compreender mais o que ouço. Sugestões?
Oi, Igor!
A postagem é do Playel, mas gostaria de dar minha opinião. Primeiro você fala sobre as interpretações usando instrumentos e técnicas de época. O interesse sobre a música do passado e como ela soava na época em que foi composta sempre interessou músicos ao longo da história (claro, alguns mais, outros menos). Basta mencionar o próprio J. S. Bach, que estudava as obras dos grandes mestres, e de Brahms, que foi diretor de coro e conhecia a música de seus antecessores. Nesta primeira página de um artigo de Geiringer, você poderá ver esse interesse do Johannes por musicologia.
https://www.jstor.org/stable/741976?seq=1
Independentemente de nossos gostos pessoais, o movimento HIP (historically informed performances) mudou a maneira como ouvimos música. No meu caso, especialmente música barroca e boa parte da música clássica.
Mas, como tudo na vida, bom senso é fundamental e em última instância, você é quem deve escolher a melhor interpretação.
Aqui está um artigo que fala sobre o surgimento do movimento de música em instrumentos de época e dá um painel sobre essa questão até hoje e me parece bem interessante.
https://bachtrack.com/nov-2013-baroque-historically-informed
Este outro artigo é bem mais duro e crítico, mas mais simples e curto.
https://www.theguardian.com/music/musicblog/2007/oct/30/itstimeforclassicalperformerstostopbeinghip
Quanto a questão dos mencionados maestros, isso é muito comum. Cada um de nós tem suas preferências e aversões por este ou aquele intérprete a despeito do que quer que eles toquem. É um comportamento absolutamente humano… Parafraseando, se é fulano, não ouvi e não gostei! Ou no reverso, se é sicrano, deve ser excelente.
Eu tenho reservas (confesso, absolutamente sem fundamentos) contra o Lorin Maazel. Ou seja, as chances de que eu coloque uma peça interpretada por ele na vitrola são quase nulas. Assim, sem explicações. Mas há três gravações nas quais ele atua que eu levaria para minha ilha deserta. Aliás, estamos todos em nossas ilhas desertas nestes dias assombrosos. Um dos tais discos de Maazel está aqui: https://pqpbach.ars.blog.br/2019/03/15/maurice-ravel-1875-1937-concertos-para-piano-jean-philippe-collard-onf-lorin-maazel/?preview_id=65732&preview_nonce=f29771a77d&post_format=standard&_thumbnail_id=65734&preview=true
Pois você menciona três monstros da música: Celibidache, Karajan e PQP! Celibidache e Karajan eram opostos quanto ao assunto das gravações: Celi nunca ia ao estúdio gravar, por convicção pessoal. Karajan não saia do estúdio… Celi era um reconhecido língua de trapo e Karajan absolutamente ambicioso. Apesar de suas convicções, as gravações feitas ao vivo de Celi estão por aí.
Karajan era obcecado com tecnologia e com a beleza do som da orquestra e acabou vítima de suas obsessões. Suas últimas gravações foram ficando cada vez mais vazias de música em troca de ficarem mais sonoramente bonitas. Esta é a minha opinião. Eu fiz uma postagem falando um pouco do caso Karajan e você poderá vê-la aqui:
https://pqpbach.ars.blog.br/2019/08/12/brahms-schubert-sinfonias-liszt-les-preludes-philharmonia-orchestra-karajan/?preview_id=68747&preview_nonce=43bf8b89df&post_format=standard&_thumbnail_id=68738&preview=true
Basta viver bastante e você mudará de opinião sobre várias coisas. Além disto, cada coisa que realizamos depende bastante das condições que dispomos no momento. John Eliot Gardiner é um dos papas do movimento de música de época. Em 1974 ele gravou Vespro della beata vergine de Monteverdi usando instrumentos que dispunha naquele momento. https://open.spotify.com/album/4BKMh9BFvTcjzZJMpK2r4f
Depois fez uma outra gravação que se tornou referência, usando a prática de instrumentos de época. https://www.amazon.com/Monteverdi-Choir-English-Baroque-Soloists/dp/B01MZCPWTW
Gardiner também regia orquestras modernas e continua a fazer isso. Ou seja, tudo cambia…
Enfim, espero ter indicado bastante material para mantê-lo ocupado e longe das ruas por algum tempo. E lembre-se, seja você mesmo o juiz do que é melhor, baseado em seus ouvidos e seu coração. Nada de pré-julgamentos ou radicalismos.
Só para fazer um paralelo: qual é maneira correta de beber scotch? Cowboy ou On the rocks? Seu café é com açúcar ou sem açúcar? Tudo é uma questão de gosto…
Abraços do René
Muitíssimo obrigado, René. Pretendo ler e ouvir todas as referências. Temos uma série de mensagens de alto nível aqui!
Apesar da resistência do pai, creio que o filho do Celibidache fez muito bem em aceitar o lançamento das gravações – embora ele próprio também faça ressalvas. Preferências e subjetividades à parte, eu gosto muito de ouvir Celibidache regendo por uma razão estritamente objetiva: ele me permite ouvir sons e identificar co-relações que não aparecem em outros regentes.