Guia de Gravações Comparadas – Honegger (1892-1955): Sinfonias nº 2 e 3 (Ansermet, Munch, Fournet, Jansons)

Nascido na França e filho de pais suíços, Arthur Honegger estudou no Conservatório de Zurich (1910-11), imerso na tradição alemã do contraponto e na música mais moderna de Wagner, R. Strauss e Reger. Após se mudar para Paris (onde foi aluno de Widor e seguiu estudando contraponto), ele escreveria em 1915 em uma carta para seus pais: minhas simpatias pela nova música francesa crescem a cada dia. Conheci e apreciei Reger e Strauss na Suíça, e continuo a gostar deles, mas percebi que compositores como Debussy, Dukas, d’Indy, Florent Schmitt e outros são mais novos e mais originais, e sobretudo têm mais sentimentos do que os alemães modernos.

A influência de Debussy e de Fauré é evidente na linguagem harmônica de Honegger, mas sua música costuma ter muito mais passagens em contraponto e imitação do que a da maioria dos franceses, provavelente por influência de Beethoven e Bach. Em 1925, Honegger escreveu: Pode-se facilmente encontrar Bach na origem de todas as minhas obras.

Entre essas obras, se destacam os três Movimentos Sinfônicos da década de 1920, incluindo Pacific 231, que imita o movimento de um trem (obra que estreou no Rio de Janeiro ainda em 1929 e que Villa-Lobos certamente ouviu, no Rio ou em Paris, antes de compor o seu Trenzinho do Caipira das Bachanias nº 2, de 1930-34). Nos anos 1930, não conseguindo emplacar muitos sucessos nas salas de concerto, Honegger compôs música incidental para rádio, música de cabaré, música de partido de esquerda e 24 trilhas sonoras de filmes. Finalmente em 1938 ele voltou a fazer sucesso como compositor sério, com a estreia do oratório Joana d’Arc na fogueira, a partir do libreto do poeta Paul Claudel. No fim da década de 30 e sobretudo na de 40, Honegger compôs suas Sinfonias nº 2, 3, consideradas por muitos como suas obras-primas. Na 3ª e na 4ª, para orquestra sinfônica, passagens em contraponto alternam com uma orquestração que às vezes soa como música de filme, e lembra nesse sentido Shostakovich, por usar alguns efeitos orquestrais simples, às vezes apelando para clichês, mas com efeitos que sempre chamam a atenção e fazem as passagens atonais soarem palatáveis. Honegger, como Shostakovich, mistura a tradição com a inovação (aliás, além de ambos terem composto música de filme, ambos se destacam como compositores de sinfonias, forma musical que revolucionários como Debussy, Schoenberg e Boulez julgavam antiquada). Mais uma citação de Honegger: “Minha inclinação e meu esforço sempre foram no sentido de escrever música que fosse compreensível para o grande público e ao mesmo tempo suficientemente livre de banalidade para interessar aos genuínos amantes da música… Quis impressionar a esses dois públicos: os especialistas e a multidão.” (Citado por Keith Waters)

Na 2ª Sinfonia, para cordas com uma pequena participação de um trompete, a orquestração com menos instrumentos faz com que o desenvolvimento temático apareça de forma mais explícita, como também é o caso da Música para cordas, percussão e celesta de Bartók. Ambas as obras, assim como a 4ª de Honegger, foram encomendadas e estreadas pelo bilionário Paul Sacher e sua orquestra de câmara da Basileia (Basler Kammerorchester). Vamos nos concentrar aqui em algumas grandes gravações das sinfonias nº 2 e 3.

Para a 2ª Sinfonia, composta durante a 2ª Guerra, veremos logo abaixo que as interpretações se dividem em dois grupos: as que enfatizam a tensão e nervosismo e as que soam menos nervosas e mais pendendo para o luto e a reflexão. Em todo caso, embora seja famosa como uma das “sinfonias de guerra” do repertório do século XX, não é uma obra programática: o autor afirmou que, se a sinfonia gera certas emoções, é simplesmente porque essas emoções estavam presentes naquele momento histórico. O fim da sinfonia é mais alegre e um tanto wagneriano, mas não daremos spoilers para quem ainda não conhece…

Na 3ª, composta poucos meses após o fim da 2ª Guerra e estreada por Charles Munch em 1946, já há um programa mais explícito: o autor deu a cada movimento um subtítulo em latim proveniente da liturgia cristã, daí o nome “Sinfonia Litúrgica”, embora não haja outra conotação especialmente religiosa ou melodias cristãs emprestadas. O 1º movimento é um allegro (Dies iræ), o 2º um adagio (De profundis) e o 3º um andante (Dona nobis pacem), que se abre com uma espécie de Marcha Fúnebre, especialidade dos franceses desde a Symphonie fantastique de Berlioz e a 2ª Sonata de Chopin. Sobre essa marcha, Honneger escreveu que queria retratar “justamente a ascensão da estupidez coletiva… A vingança da besta contra o espírito…” Lembrando que se tratava de um pós-guerra no qual a estupidez tinha realmente atingido níveis supremos. Mas, assim como na 2ª sinfonia, também aqui o final é alegre, só que em vez do clímax wagneriano da sinfonia anterior, aqui temos um clima bucólico que lembra Debussy: as nuvens pesadas vão embora e os pássaros cantam de forma nada mecânica. Vamos às comparações:

Ansermet e o Honegger intelectual

Espero que vocês tenham gostado das homenagens aos 160 anos de Debussy. Para mim, foi a oportunidade de ouvir novamente alguns grandes intérpretes de Debussy, como Toscanini, Martinon, e alguns nomes menos óbvios como Svetlanov, Baudo e Hewitt. Hoje seguimos com outro grande mensageiro da música de Debussy, Ernest Alexandre Ansermet (1883-1969), que esteve aqui no blog há algumas semanas na (re)postagem de FDP Bach.

Ansermet também foi um grande intérprete de Stravinsky e Honegger, estreando obras dos dois e tendo em comum com este último o fato de ter passado a vida entre a França e a Suíça. Nesse disco com as duas “sinfonias de guerra” além da 4ª sinfonia, Ansermet e seus músicos suíços parecem enfatizar menos as emoções das “sinfonias de guerra” e mais a genialidade de Honneger em seus desenvolvimentos de temas, contrapontos e orquestração cuidadosa. Com uma gravação de alta qualidade, podemos ouvir com clareza alguns detalhes sutis, por exemplo os baixos no início do 2º mov. da 2ª sinfonia ou o solo de cello no momento mais calmo do 3º mov. da 3ª sinfonia (p.ex. aos 8m20s). São interpretações calmas, intelectuais, podemos até lembrar que os mais velhos entre aqueles músicos suíços devem ter passado a 2ª Guerra em segurança naquele país neutro, sem o nervosismo que vivia, por exemplo, o francês Charles Munch como veremos logo abaixo.

Arthur Honegger (1892-1955):
1-3. Symphony no.2 For Trumpet And Strings: I. Molto moderato – allegro; II. Adagio mesto; III. Vivace, non troppo
4-6. Symphony no.3, “Liturgique”: I. “Dies Irae” Allegro marcato; II. “De Profundis Clamavi” Adagio; III. “Dona Nobis Pacem” Andante
7-9. Symphony no.4, “Deliciæ Basilienses”: I. Lento e misterioso – Allegro; II. Larghetto; III. Allegro
Orchestre de la Suisse Romande
Ernest Ansermet
Recorded at Victoria Hall, Geneva: 1961 (Symphony No. 2), 1968 (Symphonies No. 3-4)

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Munch e o Honegger nervoso

Provavelmente esse é o disco com mais notas levemente desafinadas ou pizicatti desencontrados postado neste blog nos últimos meses. Mas nesses tempos em que cantores da moda exageram no autotune e tudo tem que soar perfeitinho, é importante conhecermos algumas gravações ao vivo como essas feitas por Charles Munch (1891-1968) em turnê pela Europa (França, Suíça, Espanha e Finlândia) em 1962 e 64. Os eventuais desencontros entre as cordas são compensados pela tensão fortíssima da orquestra tocando em andamentos bem mais rápidos do que os de Ansermet. Mais rápidos também do que a Orchestre de Paris na gravação posterior da 2ª Sinfonia que Munch faria no seu último ano de vida. Aqui nessa apresentação ao vivo em 1964, a Orchestre National de France corre em todos os movimentos e sobretudo no último, com um Presto final loucamente acelerado que dura apenas 4m51s (a faixa é mais longa por causa dos aplausos). É um tipo de tensão que também combina com uma sinfonia conhecida como “de guerra”, e lembremos ainda que Charles Munch regeu a segunda apresentação dessa sinfonia em 1942 em Paris ainda sob ocupação nazista. E nessas gravações ao vivo temos uma amostra daquele tipo de nervosismo: a sensação de que o campo é minado, com um passo em falso, tudo pode dar errado, a orquestra corre muitos riscos e viver é desenhar sem borracha.

Em 1969, Karajan/Berlin P.O. fariam um último movimento igualmente acelerado, mas as gravações seguintes – Plasson/O.C. Toulouse (1979), Rozhdestvensky/USSR M.C.S.O. (1986) e Leducq-Barôme/Baltic C.O. (2018) – seriam um pouco mais lentas e bem comportadas, menos incisivas.

Arthur Honegger (1892-1955):
1. Le Chant de Nigamon
2. Pastorale d’été
3-5. Symphony no.2 For Trumpet And Strings: I. Molto moderato – allegro; II. Adagio mesto; III. Vivace, non troppo
6-8. Symphony no.5: I. Grave; II. Allegretto; III. Allegro marcato
Orchestre National de France
Charles Munch
Recorded live: Paris, 1962 (Chant), Basel, 1962 (Pastorale d’été), San Sebastian, 1964 (Symphony no. 2), Helsinki, 1964 (Symphony no. 5)

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Jean Fournet e a lenta marcha da estupidez coletiva

Jean Fournet (1913-2008) foi um regente francês mais associado a ópera, mas que também regeu muita música instrumental de seus contemporâneos como Messiaen, de Falla e Ibert. Sua única gravação de Honegger foi esta, aos 80 anos – ao contrário de Ansermet e Munch, íntimos do compositor e dessas obras desde a estreia – mas ele mostra uma boa familiaridade com Honegger e o disco é talvez a melhor introdução para quem não conhece o compositor, por trazer obras de diferentes períodos, como a Pastorale d’été (1920), obra com climas debussystas, feita por um jovem em busca de sua voz, e Pacific 231 (1923), primeiro grande sucesso de Honegger e já com suas características típicas. Como descreveu o compositor: “A obra inicia com uma contemplação subjetiva, o respirar quieto de uma máquina em descanso, [a seguir] seu esforço para começar, a velocidade que aumenta gradativamente […] Musicalmente, eu compus uma espécie de um grande e diversificado coral, repleto de contraponto à maneira de J. S. Bach”

E na 3ª Sinfonia, Jean Fournet e seus músicos holandeses fazem a marcha do 3º movimento de forma muito lenta, grandiosa, uma marcha da estupidez coletiva com toda a pompa e sem perder nenhum detalhe. E o primeiro flautista brilha no final, com um som fluido, irregular, em tudo o oposto da marcha que tinha a precisão de uma máquina.

Arthur Honegger (1892-1955):
1. Rugby, mouvement symphonique
2. Pacific 231, mouvement symphonique
3. Concerto da Camera
4. Pastorale d’eté
5. Symphonie no. 3, “Liturgique” (I. “Dies Irae” 0:00-7:02; II. “De Profundis” 7:03-21:19; III. “Dona Nobis Pacem” 21:20-35:15)
Netherlands Radio Philharmonic Orchestra
Jean Fournet
Recorded: 1993

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Jansons na encruzilhada entre as tradições

Mariss Jansons (1943-2019), quando jovem, foi assistente grande maestro soviético Y. Mravinsky, e parece ter herdado dele as chaves interpretativas de uma 3ª sinfonia de Honegger extremamente emotiva, também soando como uma sinfonia “de guerra”, mas sob o ponto de vista do front oriental. A marcha do 3º movimento é rápida como a de Mravinsky (em Moscou, 1965, infelizmente com qualidade de som não tão boa), e com um clima de grande tensão, colocando os ouvintes em uma atmosfera de quem perdeu amigos e parentes por causa da estupidez coletiva que Honegger mencionou no programa da sinfonia. Ao mesmo tempo, as cordas do Concertgebouw brilham no 2º movimento, como era de se esperar. O disco tem como complemento o Gloria composto por Poulenc em 1959-1961, já bem depois da guerra. Poulenc, como Honegger, fez parte do chamado “grupo dos seis” na Paris do entreguerras, embora Honegger tivesse como principal amigo no mesmo grupo o compositor Darius Milhaud.

Nesta gravação ao vivo temos uma mistura eclética de tradições: um regente de origem judaica, formado na escola soviética, com uma orquestra holandesa fazendo a sinfonia “litúrgica” de Honegger (de família protestante) junto com a liturgia católica repensada por Poulenc. O clima geral mistura por um lado o nervosismo “in tempore belli” (para lembrarmos a grandiosa missa de Haydn) e por outro lado a busca perfeccionista pelos timbres raros e detalhes como os momentos em que o piano se sobressai na orquestração: os músicos nos envolvem na encruzilhada entre a tensão interior e o brilho exterior. A encruzilhada, símbolo da ambivalência e da imprevisibilidade, traz possibilidades de vida brotando nas frestas da estupidez coletiva.

Francis Poulenc (1899-1963):
1-6. Gloria: I. Gloria in excelsis Deo – II. Laudamus te – III. Domine Deus, Rex coelestis – IV. Domine Fili, Domine Deus – V. Domine Deus, Agnus Dei – VI. Qui sedes ad dexteram Patris
Arthur Honegger (1892-1955):
7-9. Symphonie no. 3, “Liturgique”: I. “Dies Irae” Allegro marcato – II. “De Profundis” Adagio – III. “Dona Nobis Pacem” Andante)
Royal Concertgebouw Orchestra, Amsterdam
Mariss Jansons
Luba Orgonasova, soprano; Netherlands Radio Choir
Recorded live: Amsterdam, 2004 (Honegger), 2005 (Poulenc)

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Arthur Honegger, Ernest Ansermet e Roland Manuel (foto de 1925, colorizada por inteligência artificial)

Pleyel

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