Antonio Vivaldi (1678-1741): Concerti da Camera

“Sentado numa rocha, na ilha de Ogígia, com a barba enterrada entre as mãos, de onde desaparecera a aspereza calosa e tisnada das armas e dos remos, Ulisses, o mais subtil dos homens, considerava, numa escura e pesada tristeza, o mar muito azul que, mansa e harmoniosamente, rolava sobre a areia muito branca. Uma túnica bordada de flores escarlates cobria, em pregas moles, o seu corpo poderoso, que engordara. Nas correias das sandálias, que lhe calçavam os pés amaciados e perfumados de essências, reluziam esmeraldas do Egipto. E o seu bastão era um maravilhoso galho de coral, rematado em pinha de pérolas, como os que usam os Deuses marinhos.” Este suntuoso parágrafo abre o conto “A Perfeição”, de Eça de Queiroz, no qual o genial escritor português narra o tédio, a inquietação e descontentamento de Odisseu, por sete anos preso à ilha (e ao leito) da ninfa Calípso. Paraíso no qual tudo é perfeição, onde os mortais e as flores jamais fenecem: “A divina ilha, com os seus rochedos de alabastro, os bosques de cedros e tuias odoríferas, as messes eternas dourando os vales, a frescura das roseiras revestindo os outeiros suaves, resplandecia, adormecida na moleza da sesta, toda envolta em mar resplandecente. Nem um sopro dos Zéfiros curiosos, que brincam e correm por sobre o Arquipélago, desmanchava a serenidade do luminoso ar, mais doce que o vinho mais doce, todo repassado pelo fino aroma dos prados de violetas. No silêncio, embebido de calor afável, eram duma harmonia mais embaladora os murmúrios de arroios e fontes, o arrulhar das pombas voando dos ciprestes aos plátanos e o lento rolar e quebrar da onda mansa sobre a areia macia.” Odisseu, farto de tanta perfeição, anseia por atirar-se ao confronto das ondas e perigos, em busca de sua perdida Ítaca, onde lhe aguardam Penélope com seu já gasto tear e o seu filho Telêmaco.

dzcasMas existiria, fora dos domínios dos deuses, tal perfeição? Talvez a exuberância destes textos nos dê uma pista. Sim, na arte encontramos tal perfeição e para além de escritos dessa estirpe, a encontramos nos domínios da música. A arte por excelência das Musas, conforme a tradição mitológica grega. O que temos aqui, nesta postagem, é um exemplo de tal perfeição. Imaginemos que, hóspedes de Calípso, sonhamos com uma orquestra de deuses a interpretar as mais divinas peças: eis aqui a realização de um sonho assim. A flautista dinamarquesa Michala Petri – já em si uma divindade em talento e beleza, a maior flautista-block da história; ao seu lado, Felix Ayo – violinista veterano do I Musici; o exímio oboísta Heinz Holliger, capaz de inebriar com seu instrumento todas as cabeças da Hidra de Lerna; mais o incomparável fagotista Klaus Thunemann! Que dizer? Ao cravo, Christiane Jacottet, tecendo sobre as cifras do contínuo uma teia de ouro, digna das mais caprichosas criações de Hefestos. Completando a constelação, Pasquale Pellegrino, também ao violino; Thomas Demenga ao violoncelo e Jonathan Rubin, na Teorba. Estes fabulosos músicos, em total comprometimento com seu repertório e imersos em evidente paixão pelo mesmo, nos trazem a perfeição. Todas estas palavras escritas até agora também servem para dizer que Vivaldi é de lascar. Sim, o Padre Ruivo é estupendo, um artista que jamais sonegou beleza; dono de uma cornucópia de beleza musical inesgotável. Um dos ápices do que para alguns – eu, pelo menos – foi o mais extraordinário período da música (opinião pessoalíssima). O reverendo veneziano que ensinou ao mestre maior, J. S. Bach, os sensos de proporção, discurso instrumental e equilíbrio; o próprio mestre declarou isso em carta, após ter tido acesso a concertos da série do L’Estro Armonico de Vivaldi, os quais transcreveu para o cravo e o órgão. A gravação é de 1983. Há muitos anos tive este espetáculo fonográfico em vinil. Esperei séculos para que aparecesse em CDs. Eis que os bons e misericordiosos deuses vieram a me recompensar a longa espera. Agora tenho o sincero prazer e honra de partilhá-lo com vocês. Esta suprema beleza e perfeição, que se existisse na ilha de Calípso, eu sendo Ulisses, esqueceria Ítaca e por lá iria ficando. Na foto acima, noite em Veneza. Sob a Ponte dos Suspiros correm as fétidas águas que nos legaram tanta beleza.

14kfw3nNão poderia escrever o que quer que fosse sobre Vivaldi sem que caísse em certo arrebatamento, efeito de sua música sobre nós. Entre estes concertos temos uma de suas criações mais ricas e impressionantes: a Sonata em lá menor RV 86. Há muitos anos me correspondia com a Biblioteca Nacional no Rio de Janeiro, com o setor de partituras. Era atendido por gentilíssimas senhoras, que me forneciam sob ínfimo preço partituras diversas. Entre elas, alguns desses concertos e a citada Sonata. Atualmente, infelizmente, o setor decaiu e aquelas senhoras, pelo que soube, já não lá se encontram – evidente reflexo da decadência cultural em curso nos últimos anos em nosso desventurado país. Não vivemos na ilha de Calípso, enfim, mas a música nos traz a perfeição que nos inspira a olhar para melhores horizontes.

Disco I

Concerto RV 94 in D-dur
1 Allegro
2 Largo
3 Allegro

Concerto RV 103 in g-moll
4 Allegro ma cantabile
5 Largo
6 Allegro non molto

Concerto RV 87 in C-dur
7 Adagio – Allegro
8 Largo
9 Allegro assai

Sonata RV 86 in a-moll
10 Largo
11 Allegro
12 Largo, cantabile
13 Allegro molto

Disco II

Concerto RV 101 in G-dur
1 Allegro
2 Largo
3 Allegro

Concerto RV 108 in a-moll
4 Allegro
5 Largo
6 Allegro

Concerto “La Pastorella” RV 95 in D-dur
7 Allegro
8 Largo
9 Allegro

Concerto RV 105 in g-moll
10 Allegro
11 Largo
12 Allegro molto

Concerto RV 92 in D-dur
13 Allegro
14 Larghetto
15 Allegro

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Michala Petri, em todo seu poder e glória
Michala Petri, em todo seu poder e glória

Wellbach

3 comments / Add your comment below

  1. Vivaldi é magnifico, e sua música, magnifica. Agradeço pela postagem e pelo texto porque sempre aprendemos um pouco mais através deles. Vivaldi escreveu grande parte de suas obras para os então famosos conservatórios de Veneza. Entrou na história principalmente como compositor de música instrumental. É o maior especialista de concerti grossi antes de Bach sobre quem exerceu forte influencia. Todas as obras deste grande compositor distinguem-se pela fresca invenção melódica, pelo temperamento e pela arte de instrumentação. Mas a densidade polifônica é muito menor do que em Bach e não podemos compara-lo a este porque Vivaldi só é especialista em determinados generos(concerto). Enquanto era vivo circulavam lendas fantásticas sobre suas inspírações repentinas e seu temperamento fogoso pouco compatível com a dignidade sacerdotal(il prete rosso) que quase todo mundo conhece.
    abraços
    manuel

    1. Abraço, Manuel, belo comentário. Sem dúvida que polifonia era com o velho Bach, para o Padre Ruivo não era uma razão estética, mas um acessório.

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