A. Gabrieli, C. Merulo, O. di Lasso, M. Facoli, G. Radino, G. Picchi: Fim do século XVI em Veneza (J.-M. Aymes / F. Bonizzoni, cravos)

Dois CDs dedicados à música para teclado do norte da Itália por volta de 1590-1600. Veneza: “tão única no mundo e tão estranha que parece saída de um sonho”, nas palavras de Juan del Encina por volta de 1500. Naquela época, ao mesmo tempo que começava lentamente a perder protagonismo comercial para as caravelas do comércio atlântico, Veneza mantinha-se como uma cidade notável por sua mistura de influências de todo o Mediterrâneo e especialmente da metade oriental daquele mar. Ao mesmo tempo, uma inovação recente havia se firmado há poucos anos: a impressão em papel. É preciso lembrar que a Bíblia de Gutenberg é de 1455, e que poucas décadas depois tanto Veneza quanto Roma já contavam com dezenas de casas comerciais que imprimiam – sabe-se lá o quê! Livros religiosos, seculares, talvez listas de mercadorias e também música, talvez nem tanta música em 1500, mas sem dúvida muita música mais para o fim daquele século.

Em 1600, Veneza seguia única com seus palácios de estilo meio gótico, meio bizantino, meio árabe – as três metades se equlibravam sobre as águas da laguna meio que por mágica, mas também por técnicas milenares. E seguia sendo uma das cidades com mais casas de impressão na Europa. Este disco traz obras para cravo impressas em Veneza entre 1588 e 1621: a música puramente instrumental apenas começava a ser escrita e publicada, ao contrário da vocal que já tinha tradição de manuscritos por monges e padres da idade média. Não é um acaso que a difusão da imprensa tenha coexistido com essa ideia nova e revolucionária de se registrar no papel música instrumental.

No disco da Harmonia Mundi, temos alguns dos primeiros compositores a publicarem obras impressas (e não só manuscritas) para instrumentos de teclado. Alguns deles – Facoli, Radino, Picchi – escreveram volumes de obras ligeiras, danças e coisas do tipo, que dão um interessante panorama de como devia ser a vida musical em Veneza e região vizinha por volta de 1600.

Andrea Gabrieli e Claudio Merulo já são outra coisa, compará-los com esses outros citados é como comparar duas grandes árvores com pequenas flores. A flor tem beleza, aroma, simpatia, mas uma árvore de dezenas de metros, cheia de galhos mas também cipós e epífitas, insetos e pássaros em sua copa, isso é algo mais próximo da complexidade da escrita de A. Gabrieli, cheia de encontros e desencontros de diferentes vozes em contraponto e outras sutilezas.

Andrea Gabrieli sucedeu ao seu professor, o franco-flamenco Adrian Willaert (morto em 1562) no cargo de responsável pela música da Basílica de San Marco. Muitos estrangeiros vinham escutar a música de San Marco e, se possível, aprender um pouco com Willaert, A. Gabrieli e, depois, com seu sobrinho G. Gabrieli, outro importante compositor de Veneza. Ambos foram organistas na Basílica de São Marcos, isso é bem documentado, mas a atividade deles tocando cravo ou clavicórdio em casas, palácios e jardins já é um assunto sobre o qual podemos apenas sonhar. O volume “Canzoni alla francesa & Ricercari Ariosi libro Quinto”, como o nome indica, reunia obras de A. Gabrieli que se baseavam em melodias de canções, fossem elas de origem popular ou inventadas pelo compositor. O princípio é simples como uma semente, mas dele se originavam exuberantes árvores sonoras.

Sobre Andrea Gabrieli, as notas do CD nos informam: compositor prolífico e respeitado, ele reune em sua música para teclado as heranças dos polifonistas franco-flamencos e a da música espanhola para órgão, a mais evoluída do século XVI com compositores como Antonio de Cabezòn e Juan Bermudo. O seu “Pass’e mezzo Antico” está mais próximo de certas obras espanholas do que do “Pass’e mezzo” de Picchi, de estilo bem mais solto. Gabrieli faz um rico trabalho imitativo, caracterizado, ao mesmo tempo, mais por elegância do que por virtuosismo.

Andrea Gabrieli, além de organista, foi cantor no coro de San Marco quando jovem. De sua ligação com a polifonia vem provavelmente a predominância das formas imitativas. Ricercari e Canzoni são mais frequentes em sua obra do que a forma mais livre da Toccata, a qual tinha como mestre inigualável seu colega em San Marco, Claudio Merulo.

Gabrieli se baseou em uma célebre canção muito famosa naqueles tempos, “Suzanne un jour”, de Lassus, para transformá-la praticamente em uma Pavana – palavra derivada de Padoana, de Pádua, cidade próxima a Veneza – cheia de ornamentos. Para dar uma ideia da distância entre a [i] canzon de Gabrieli e o modelo vocal, o disco apresenta uma versão da canção de Lassus, originalmente para cinco vozes, apenas com a parte de soprano cantada por Kiehr. Era comum naquela época essa prática de improvisos e passagi que traziam apenas uma distância lembrança da canção original.

O disco termina com uma Toccata de Claudio Merulo: embora nascido na Emilia-Romagna (região italiana situada entre Veneza e a Toscana), ele permaneceu em Veneza como organista em San Marco por quase 30 anos, e foi ali que ficou famoso também como compositor, fazendo música para os nobres de Veneza e também comparecendo em Florença no casamento de Franceso de’ Medici como embaixador da Serenissima República de Veneza. Ele foi inovador sobretudo nas suas toccatas, com alternância de momentos polifônicos e passagi brilhantes de virtuosismo. Isso significa que ele alternava, na mesma composição, momentos de contraponto elaborado sob certas regras e momentos bastante livres. Esse estilo influenciou as Toccatas de italianos como Frescobaldi e A. Scarlatti e ainda as de gente de terras distantes como Sweelinck na Holanda, Buxtehude e J.S. Bach na Alemanha.

A toccata de Merulo aqui presente foi publicado no seu segundo livro de “Toccate d’Intavolatura d’organo”. Intavolatura significa introdução. Esse nome, equivalente ao de “Prelúdio” em séculos seguintes, indicava que boa parte da música instrumental publicada era compreendida como introdução a um “Prato Principal” que costumava ser a música vocal, fosse ela sacra ou profana.

Marco Facoli (séc. XVI)
1-10. Peças de “Il secondo Libro d’Intavolatura di Balli d’Arpicordo (Veneza, 1588)
Aria della Comedia nuovo, Aria della Marchetta Schiavonetta,
Aria della Signora Livia, Padoana prima dita Marucina, Aria della Signora Fior d’Amor, Aria della Signora Ortensia,
Aria della Signora Michiela, Padoana quarta dita Marchetta à doi modi, Napolitana “Deh pastorella cara”, Napolitana “S’io m’accorgo ben mio”

Andrea Gabrieli (ca. 1510-1586)
11-12. Peças de “Il Terzo Libro de Ricercari (Veneza, 1596)
Pass’e mezzo antico in cinque modi variati, Ricercar del secondo tono

Giovanni Maria Radino (séc XVI – após 1607)
13-17. Peças de “Il primo Libro d’Intavolatura di Balli d’Arpicordo (Veneza, 1592)
Gagliarda seconda, Gagliarda prima, Padoana prima, Gagliarda terza, Gagliarda quarta,

Orlando di Lasso (1532-1594)
18. Peça de “Mellange d’Orlande de Lassus” (Le Roy & Ballard, 1570)
Susanne ung jour (G. Guerault), chanson

Andrea Gabrieli (ca. 1510-1586)
19-20. Peças de Canzoni alla francese & Ricercari Ariosi, Libro Quinto (Veneza, 1605)
Canzon deta “Suzanne un iour” d’Orlando Lasso, Canzon deta “Frais et Galliard” di Crequillon

Giovanni Picchi (fin do séc. XVI – início séc. XVII)
21-28. Peças de “Intavolatura di Balli d’Arpicordi” (Veneza, 1621)
Ballo ditto il Steffanin, Todescha con il suo Balletto, Ballo ditto il Picchi, Padoana ditta La Ongara, Ballo ongaro con il suo Balletto, Ballo alla Polacha con il suo Saltarello, Pass’e mezzo, Saltarello del Pass’e Mezzo

Claudio Merulo (1533-1604)
29. Peça das “Toccate d’Intavolatura d’organo, Libro Secondo”
Toccata Seconda

Jean-Marc Aymes – cravos fabricados por Philippe Humeau, cópias de Giovanni Antonio (Veneza, 1579) e anônimo italiano
Faixa 29: claviorganum por Philippe Humeau e Etienne Fouss
Faixas 9, 10, 18: Maria-Cristina Kiehr, soprano

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O cravo assinado “Baffo – Venetus – 1574”. Abaixo, mais detalhes dele
Na tábua, figuras que remetem à antiguidade greco-romana Junto ao teclado, arabescos típicos do mundo islâmico


Os dois livros que nos transmitiram as toccatas de Merulo foram publicados pelo autor, que também era editor de partituras. Sabemos que, de maneira geral, a escrita musical se transformou progressivamente e se enriqueceu de novos sinais gráficos a fim de permitir uma melhor transmissão das intenções do autor para o intérprete. Certos compositores sentiram este exigêncie de precisão com mais acuidade do que outros, e Merulo certamente foi um destes: ao contrário de Frescobaldi, porém, ele não utilizou, para alcançar tal objetivo, indicações dinâmicas ou agógicas, ou prefácios explicando o que a página musical não podia conter. Ele colocou seu pensamento unicamente na notação escrita, que articulou através de uma variedade de ritmos e de agrupamentos de notas absolutamente sem igual.

Merulo obriga assim o intérprete a se equilibrar entre, de um lado, a precisão da escrita musical e, de outro lado, seu renome como improvisador, o que faz pensar em interpretações fundamentalmente livres e inventivas. Sua precisão de escrita, da fato, poderia facilmente afastar o intérprete em nosso século do espírito original das obras, preocupado apenas com a realização meticulosa de cada detalhe. Mas se consideramos as partituras […] como a tradução escrita de alguma coisa que escapa à notação musical tradicional, então o intérprete alcança um leque fascinante de possibilidades, o que lhe permite recriar o clima de improviso que esteve presente no nascimento dessas obras. É, então, a busca por um equilíbrio delcado entre a fidelidade ao texto e a liberdade de interpretação que me conduziu ao longo da execução dessas obras sedutoras.
(Fabio Bonizzoni, 1997)

Claudio Merulo (1533-1604):
Toccate, Ricercari, Canzoni

Fabio Bonizzoni, cravo veneziano (anon.), fim do século XVI & órgão da Madonna di Campagna em Ponte in Valtellina, 1519-1589
(venetian harpsichord, anon., end of 16th c. & organ from Ponte in Valtellina, 1519-1589)

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O cartão de visitas do barbudo Claudio Merulo

Pleyel

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