Dia dos namorados PQP: As Paixões de Johann Sebastian Bach (1685-1750) — Klemperer, Suzuki

Aos heróis alviverdes de 1993, na figura de Evair Aparecido Paulino

Jan Gossart, “Um casal de velhos” (1510-28?)

12 de junho, Dia dos Namorados! Dia de pegar fila em restaurante, pagar caro para comer fondue e tirar a barriga das floriculturas da miséria. Uma data para exaltar o amor e a paixão, o estar junto com quem se ama. E, claro, nós do PQP, românticos que somos, não deixaríamos nossos leitores na mão. Convenhamos, existe alguma maneira melhor de dizer “eu te amo” para quem faz nosso coração bater mais rápido do que mergulhar juntos nessas cinco horas e tanto de celebração luterana do evangelho? Se existe, este blogueiro desconhece.

Pensando nisso, trouxemos não só uma, mas as duas Paixões escritas por ele, ele mesmo, nosso guia, o velho Kapellmeister Johann Sebastian Bach (1685-1750), que sobreviveram de forma integral até chegar a nós: a Paixão segundo São Mateus, BWV 244 (1727) e a Paixão segundo São João, BWV 245 (1724). E em duas gravações bem distintas, em muitos sentidos: abordagem, sonoridade, época e até continente. Uma pequena mostra da genial universalidade da obra de Bach, que há séculos nos assombra e nos redime.

Nesses dois oratórios, em cinco cds, parece caber a humanidade inteira.

Franz Hals, “São Mateus”, 1625

Paixão segundo São Mateus é a mais tocada das duas. Com libreto de Picander (pseudônimo do poeta Christian Friedrich Henrich, 1700-1764), ela foi composta a partir dos capítulos 26 e 27 do Evangelho de Mateus da Bíblia luterana. Se inicia com Jesus anunciando sua morte em Jerusalém e termina com um grande coro que chora a morte do Messias, após José de Arimateia pedir seu corpo para Pôncio Pilatos.

A gravação que trazemos é histórica: Otto Klemperer (1885-1973), um judeu alemão que fugiu do nazismo para tornar-se uma figura fundamental na música de concerto da Inglaterra, à frente de sua Philharmonia Orchestra, 1961. O time de cantores é de primeiríssima linha, e destacamos a linha de frente: o tenor Peter Pears (Evangelista), o barítono Dietrich Fischer-Dieskau (Jesus), a soprano Elisabeth Schwarzkopf, a mezzo-soprano Christa Ludwig e o tenor Nicolai Gedda.

Otto Klemperer gravando com a Philharmonia Orchestra, anos 1960

Como dizem os americanos, temos aqui Klemperer at his very best: paixão, densidade, uma paleta de cores fortes, mas com um senso de equilíbrio a nortear a arquitetura da peça. Uma sonoridade intensa, mas que ao final não deixa qualquer sensação de que algo ali foi exagero. Klemperer extrai imensa beleza da dor e do trágico, nos lembrando das inevitabilidades da vida (e da morte).

Fechar os olhos e mergulhar neste Bach klemperiano é como adentrar uma imensa catedral, em algum canto da velha Europa, e sentir o ar frio entrar em nosso peito, fazendo-nos sentir vivos. Vivos em meio aos mortos, como sempre foi e sempre há de ser — até um dia não ser mais. Como dizia o saudoso Afonso Arinos, “amor pelo passado e sentimento do futuro”.

El Greco, “São João Evangelista”, 1605

Paixão segundo São João é um pouco anterior, composta durante o primeiro ano em que Bach foi Kapellmeister da Thomaskirche, em Leipzig. Foi estreada na Sexta-Feira Santa, 7 de abril de 1724, a alguns quarteirões dali, na Nikolaikirche. É uma obra dividida em duas partes, pensadas para serem apresentadas antes e depois de um sermão. Ela foi escrita a partir dos capítulos 18 e 19 da Bíblia luterana — o Evangelista canta as palavras exatas do texto bíblico —, combinando-os com outras fontes sacras (recitativos, coros e hinários inspirados no Evangelho de João). Bach a revisou algumas vezes ao longo da vida, e a versão que trazemos nesse post é a de 1749.

Se a Paixão segundo São Mateus parece, de alguma forma, mais “concluída”, organizada segundo uma arquitetura mais próxima do léxico bachiano, a Paixão Segundo São João tem um espírito visceral e urgente, que tinge sua beleza com algo de feroz. A introdução da obra é das coisas mais magníficas que Bach escreveu: são 36 compassos em que a orquestra já informa nosso espírito sobre a grandeza da ação que vai ser contada. O coro, então, entra como se fosse um dos dons flamejantes de Pentecostes desabando do céu, anunciando a glória divina: “Herr! Herr! Herr! Unser Herrscher, dessen Ruhm in allen Landen herrlich ist!” (“Senhor! Senhor! Senhor! Nosso Senhor, cuja glória é magnífica em todas as terras!”). João, o Evangelista, nos guia então até o enterro do salvador.

Primeira página do manuscrito da “Paixão Segundo São João”

A estupenda gravação — de abril de 1998 — que trazemos para vocês, queridos leitores e leitoras e leitores do PQP, fica por conta do regente, organista e cravista Masaaki Suzuki (1954*), a primeira à frente do grupo que criou em 1990 e dirige até hoje, no mais alto panteão da música barroca feita neste planetinha azul que gira pelo espaço: o Bach Collegium Japan.

Masaaki Suzuki e o Bach Collegium Japan no Carnegie Hall, em Nova York

Para alguém que ganha a vida escrevendo, como é o caso deste por trás destas linhas, é um certo atestado de incompetência dizer “não tenho palavras para expressar” tal ou tal coisa. Mas o Bach de Suzuki e seu Collegium é tão bom, mas tão bom, mas tão bom, que não sobra muito por dizer a este blogueiro a não ser: ouçam! Cancelem compromissos, levantem barricadas nas ruas, parem tudo e escutem algumas das coisas mais belas que a humanidade jamais produziu. É desta categoria que estamos falando. O tipo de coisa que faz a gente agradecer por estar vivo, ter um aparelho de som, viver nesse tempo e poder escutar algo tão sublime.

O intuito desse post foi exaltar, mais uma vez e sempre que possível, a genialidade de um certo Johann Sebastian Bach. Como a fibra que tece suas obras é feita do tecido mais íntimo daquilo que podemos talvez chamar de “espírito humano”, abrindo oceanos infinitos de interpretações. Percorrer Bach é, sempre, contemplar o infinito.

A escolha por juntar ambas as Paixões, além de trazer duas gigantescas obras do repertório bachiano em gravações espetaculares, também teve o intuito de evitar a comparação direta de interpretações, que por vezes pode conter o risco de limitar o nosso olhar a detalhes ou questões pontuais. Isso também tem seu interesse, mas o objetivo aqui era bem distinto: celebrar a riqueza e as possibilidades que vêm de reunir um grupo de pessoas para dar vida às obras compostas por um gênio em um tempo distante.

Ouvir Bach é como olhar as estrelas: passado, presente e futuro são um só. Ou não?

Feliz dia dos namorados!

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12/06/1993: Evair cobrando o pênalti dos 4×0: o Jesus de Crisólia se eterniza no Dia da Paixão alviverde

PS: Esse post é dedicado aos jogadores da Sociedade Esportiva Palmeiras que, há exatos 30 anos, em 12 de junho de 1993, goleavam o rival Corinthians por 4 a 0 e colocavam fim a uma fila de quase dezessete anos sem títulos ao conquistar o Campeonato Paulista. O Dia da Paixão alviverde é um dos mais significativos da história do clube, unindo as pontas da vida de gerações de torcedores, cuja fé e memória são amparadas em uma mitologia compartilhada.

Se, convenhamos, a música é a maior invenção humana, o futebol certamente é a segunda. Em ambas temos o ser humano em tudo o que tem de mais glorioso e de mais trágico. Ao menos assim me contaram, e assim sigo contando…

Karlheinz

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Johann Sebastian Bach (1685-1750)

Paixão segundo São Mateus, BWV 244
(3 cds)

Peter Pears, tenor (Evangelista)
Dietrich Fischer-Dieskau, barítono (Jesus)
Elisabeth Schwarzkopf, soprano (árias, esposa de Pilatos, serviçal)
Christa Ludwig, mezzo-soprano
Nicolai Gedda, tenor
Walter Berry, baixo
John Carol Case, barítono (Judas)
Otakar Kraus, barítono (Pôncio Pilatos, alto sacerdote, padre)
Helen Watts, soprano (Serviçal, testemunha)
Geraint Evans, barítono (padre)
Wilfried Brown, tenor (testemunha)

Boys of Hampstead Parish Church Choir
Philharmonia Chorus
Philharmonia Orchestra

Otto Klemperer, regência

 

Paixão segundo São João, BWV 245 (versão de 1749)
(2 cds)

Gerd Türk, tenor (Evangelista)
Chiyuki Urano, baixo (Jesus)
Peter Kooji, baixo (árias, Pilatos, Pedro)
Ingrid Schmithüsen, soprano
Yoshikazu Mera, contratenor
Yoshie Hida, soprano (Serviçal)
Makoto Sakurada, tenor (árias, serviçal)

Bach Collegium Japan
Masaaki Suzuki, regência

Bônus:
3 árias da Paixão de São João, BWV 245 a-c 
(versão de 1725)

Ingrid Schimthüsen, soprano
Gerd Türk, tenor
Peter Kooji, baixo

Bach Collegium Japan
Masaaki Suzuki, regência

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