A cultura e a ilusão do mercado

Por John Neschling

Juca Ferreira representa um tipo de político que chama para si a responsabilidade de viabilizar o que o mercado jamais terá interesse em fazer

Na abertura da temporada do Teatro Alla Scala de Milão, o evento mais importante da pauta operística do mundo, o maestro Daniel Baremboim dirigiu-se ao público presente na sala, fazendo sua a preocupação da comunidade produtora e consumidora de cultura na Itália e na Europa em relação aos cortes drásticos de subvenções e à retração do Estado de suas responsabilidades culturais.

Foi delirantemente aplaudido. Fora do teatro, uma grande manifestação popular de repúdio aos cortes estatais teve que se ver com a repressão policial do governo Berlusconi. Fosse italiano, o cineasta Luiz Carlos Barreto estaria do lado da turma do Berlusconi, gritando a plenos pulmões que o Estado não deve ser provedor de cultura.

Ao menos é o que se depreende da leitura de seu artigo “Nem fica nem sai Juca”, publicado nesta Folha no dia 9 deste mês.

No seu texto, na verdade um manifesto anti-Juca Ferreira, Barreto desclassifica toda uma mobilização espontânea de importante parte da classe artística, que vem apoiando a permanência de Ferreira no Ministério da Cultura, em diferentes partes do Brasil, afirmando que tal movimento não conta com a participação da “classe artística”.

E o que somos nós, músicos, cantores, diretores de teatro, pensadores culturais, dançarinos, produtores etc., que temos, sim, nos engajado publicamente pela sua recondução ao cargo?

Talvez Luiz Carlos ache que eu seja beneficiário de uma verba astronômica dirigida à “cultura de salão” e nem me considere artista digno de discutir a questão cultural no país. Talvez ele desconsidere a linguagem cultural que eu represento, a julgar pela forma pejorativa com que se refere à música clássica.

Barreto é o tipo de produtor artístico que Berlusconi tem como ideal para o século 21, aquele que recebe as benesses do Estado, mas o isenta da enfadonha responsabilidade de pensar a cultura e apresentar democraticamente propostas definidas de política cultural.

Evidentemente que, com esse perfil, Barreto jamais apoiará um ministro como Juca Ferreira. Ferreira representa um tipo de político que encara o Estado como um pensador e enunciador de política cultural, com projetos definidos, e que chama para si a responsabilidade de viabilizar aquilo que o mercado jamais terá interesse em realizar.

Curioso é perceber que justamente essa produção cultural “autônoma”, que Barreto enaltece, viveu as últimas décadas mamando nas tetas generosas do Estado, beneficiando-se justamente dos “mecanismos de clientelismo” que o produtor cinematográfico critica.

Reclamando eternamente da penúria em que são mantidos os “autônomos”, se opõe a um ministro que propõe uma discussão democrática sobre o emprego das verbas oficiais para a cultura, alegando que se trata de prática autoritária.

Realmente, para Barreto, como ele mesmo afirma, não é importante discutir se Juca fica ou não. Aliás, para essa tendência que representa, não é fundamental um ministro que pensa e que discute. Aliás, nem é importante ter um ministro da Cultura, sonho de Berlusconi. Basta um mecanismo de distribuição de verbas e esmolas para o pátio dos milagres das artes brasileiras.

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JOHN NESCHLING, maestro, é diretor artístico da Cia. Brasileira de Ópera. Foi diretor artístico e regente titular da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo. Também dirigiu os teatros municipais de São Paulo e do Rio de Janeiro e os teatros São Carlos (Lisboa), St. Gallen (Suíça), Massimo (Palermo) e a Ópera de Bordeaux.

PQP

6 comments / Add your comment below

  1. parece que tem gente não muito interessado numa cultura questionante, que engrandece o homem, torna-o questionador, induz ele à crítica. Todos aqui sabemos dessa importancia musical, das sátiras que diversas obras representaram, da crítica que muitos músicos fizeram à sociedade. não só na música, mas entre todas as artes em geral: artes plásticas, literatura, dança.

    bom mesmo é botar funk, rebolation e essas porcarias que só emburrecem e anestesiam a população dos problemas que a arte de boa qualidade insiste em continuar mostrando. esse é o problema da cultura.

  2. desde Marx, passando a escola de Frankfurt com Adorno, Horkheimer e Benjamin isso sempre foi debatido …
    o problema esta nesse sistema brutal …
    mt complicada essa questaão …

  3. Eu fico me perguntando o porquê do Estado injetar recursos em projetos que são financeiramente viáveis, que vão extrapolar em lucros. Vide muitos dos filmes que sr. Barreto produziu e produz. Concordo que a ação do Estado, como um Mecenas mesmo, deve privilegiar projetos que são culturalmente interessantes (aí o Estado tem que ter um projeto político de cultura)e servirão como propagador -disseminador – de visões que o chamado mercado tradicional de arte não está interessado, talvez mesmo por representar um perigo ao investimento.

    abraço

  4. “Cia Brasileira de Balé”? Eles se apresentaram aqui em Petrópolis hoje e ontem (11/12 e 12/12, respectivamente) com o balé “Quebra Nozes”. Eu fui nos dois dias, e em ambos eu saí de lá outra pessoa.

  5. Lamento, mas…

    Essa história de que as “belas artes” necessariamente formam indivíduos questionadores, e de que a “cultura popular” necessariamente forma massas alienadas, incultas e incapazes de pensar, não passa de balela.

    Há muita gente culta e inteligente que gosta de cinema, teatro e literatura, e não dá a mínima para música sinfônica, ópera e congêneres. Da mesma forma que há muita (e como há) gente profundamente ignorante que respira “alta cultura” diariamente (refiro-me principalmente a músicos, categoria que conheço melhor).

    A qualidade e quantidade da leitura de um músico ou de um ouvinte de música, no Brasil, não é necessariamente melhor do que a de um apreciador de cinema. Não mesmo. Infelizmente.

    Outra coisa: o “problema” não está no “sistema brutal”. Essa é uma interpretação de um reducionismo profundo. Pela verdadeira lógica “capitalista”, é certo, não haveria subvenção nenhuma, a arte nenhuma.

    O “problema”, se é que há algum, é que a distribuição de verbas culturais é uma decisão estritamente POLÍTICA (da mesma forma que o era na União Soviética, por exemplo). E é fato que o cinema é muito mais popular e angaria dividendos políticos altíssimos, até porque, convenhamos, é muito mais apelativo e alcança muita gente.

    Quem se lembra que, até os anos 80/90, era um sacrilégio dizer que o cinema nacional era uma porcaria? Que a “intelectualidade” brasileira (principalmente a ligada à esquerda) era unânime ao afirmar a necessidade da proteção e incentivo ao cinema pátrio? É no mínimo irônico que agora se venha afirmar que a proteção dada ao cinema brasileiro é uma crueldade do “sistema”, colocando-se até a coitada da Escola de Frankfurt no meio, cujos expoentes, é certo (incluído Adorno, que aliás era fã inveterado do tio-avô do John Neschling), não conheceram nem a “Embrafilme”…

    Ok, agora minha opinião absolutamente pessoal: no fundo, o cinema QUE SE PRODUZ HOJE no Brasil, com possíveis exceções (as quais não tive ainda a oportunidade de conhecer) não passa de um lixo perfumado e enfeitado com alta tecnologia. Em cada esquina das nossas capitais há um oportunista que se autointitula cineasta, geralmente com curso superior incompleto, choramingando patrocínios para seus “projetos” cheios de empáfia e vazios de originalidade.

    Soluções a propor? Infelizmente não tenho. Talvez tenhamos que esperar os resultados da “polenização” realizada por abnegados como o PQP Bach, para que, quem sabe, gerações futuras compreendam o quanto é importante propiciar a seus cidadãos o acesso à boa e bem executada música erudita.

    E torcer pela profecia do filme de Cacá Diegues, segundo o qual “dias melhores virão”.

    Ou, ao menos, que venham filmes um pouquinho melhores do que os que seguem o “padrão Barreto”.

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